E se os tênis falassem? Contariam uma das mais interessantes trajetórias de consumo do nosso tempo — a de uma revolução que começou silenciosa, um tanto desengonçada e sem graça, e que a partir dos anos 1980 do século passado ergueu um edifício de comportamento. Estima-se que o mercado de calçados esportivos — e que invariavelmente não são usados para a prática de esportes — tenha movimentado algo em torno de 152,4 bilhões de dólares em 2022. Há quem o chame de “subcultura”, mas o uso do elemento designativo de inferioridade, o “sub”, soa indevido. Há, em torno de grifes conhecidas e outras nem tanto, uma real cultura, com C maiúsculo. A era do tênis, que associa praticidade e elegância (ou não, tanto faz) a um jeito de ser, a manifestos políticos, talvez seja uma das mais fortes marcas da passagem do século XX para o XXI. Como revelou o filme Air — A História por Trás do Logo, de Ben Affleck, a emergência da onda explodiu em 1984, com um certo modelo de um certo Michael Jordan, o melhor jogador de basquete de todos os tempos — e mais nada precisa ser dito. Contudo, eis aí uma novidade: os últimos meses aceleraram uma tendência sem limites, e convém agora iluminá-la. Parece não haver dúvida: quando as futuras civilizações olharem para a época atual, verão um par de pisantes, o rei incontestável das ruas, seu território sagrado e inescapável.
Dá-se a permanência do fenômeno com o relançamento de clássicos que não perdem o charme. Um exemplo claro desse resgate de silhuetas históricas vem da Adidas, que acaba de pôr nas redes uma campanha centrada em três modelos: Gazelle, Superstar e Samba. No final do ano passado, as colaborações com a grife Gucci e a estilista Wales Bonner motivaram uma demanda sem precedentes pelo Samba, lançado originalmente na década de 1950. “Esse olhar nostálgico é valioso para a cultura dos tênis”, diz Fernando Hage, coordenador do Curso de Moda da Fundação Armando Alvares Penteado (Faap). Vira-se para o passado de mãos dadas com o presente. Um tênis descolado serve ao rock, ao hip-hop e ao skate. Serve à luta dos negros por direitos iguais aos dos brancos. “O tênis saiu das quadras de basquete e das pistas de corrida assinalando momentos seminais da sociedade”, diz Ricardo Nunes, fundador do SneakersBR, primeiro portal dedicado à cultura sneaker do Brasil. Se forem funcionais e confortáveis, quem sabe bonitos, melhor ainda — mas o crucial é que digam algo a respeito de quem os leva nos pés.
Agora, alimentados pelo poder das mídias sociais e de celebridades (Cardi B com um Reebok, Harry Styles de Vans, Will Smith de Air Jordan etc.), os calçados estão mais visíveis que nunca, estimulando um séquito de colecionadores ávidos por exclusividade. “O que torna um item banal em um objeto de desejo é a narrativa que se cria em torno dele”, diz Mariana Cerone, professora do Hub de Moda e Luxo da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM). E, então, coleções assinadas por designers de escol, multiplicadas por famosos, as populares collabs, ajudam a fomentar o mercado, que não para de andar de modo acelerado — em 2023, houve uma expansão de 2,7% nas vendas em relação ao ano anterior. Para os sneakerheads, como são chamados os colecionadores fanáticos, o preço é justificado e acessível, sim. Afinal, para eles, trata-se de registros da humanidade sintetizados na forma de um tênis. Descalços, nunca mais.
Publicado em VEJA de 29 de setembro de 2023, edição nº 2861