Desde que me entendo por gente, sabia que era diferente dos outros e sofri muito por isso. Estudei em boas escolas particulares e sempre fui ótima aluna, a ponto de conseguir até bolsa integral em uma delas. Mas precisei sair do colégio, tamanho era o assédio e o nível dos xingamentos justamente por não ser um menino como os demais. Eu reclamava na coordenadoria e ninguém fazia nada. Não sabiam lidar com aquilo. Assim, fiquei em suspenso, sem objetivo nem horizonte. Por uma questão de sobrevivência, tentei negar por muito tempo quem era. Em dado momento, porém, ficou impossível me manter em silêncio, dentro do armário. Segui então o difícil caminho da transição de gênero, aos 16 anos, com o apoio dos meus pais. Mesmo depois, guardei certa reserva. Não usava saia em casa, por exemplo. A trajetória até aqui, já tendo ocupado uma vaga de coordenadora de projetos no Superior Tribunal de Justiça, envolveu sofrimento e exigiu uma força fora do comum para me firmar neste mundo do jeito que eu sou — uma mulher trans.
Quando me senti mais segura, voltei ao ensino médio e, de lá, parti para a faculdade de estética e artes. Sei que meu corpo ainda é visto como algo estranho na sociedade. A filósofa americana Judith Butler se refere a pessoas como eu como alguém abjeto, fora da ordem do compreensível, daí incomodar. Costumava me achar um fracasso, mas isso mudou. Aos poucos fui abrindo portas, mesmo não havendo quase nenhum espaço de trabalho para gente como eu. Arranjei um emprego na Escola de Artes Visuais, no Rio de Janeiro, e ali, naquele meio, era interessante ser trans. Com o tempo, ganhei confiança e decidi estudar para concurso público, em busca de estabilidade. Acabou dando certo: passei em oitavo lugar para o STJ e me tornei a primeira e única servidora transexual da Corte. E não parei mais. Me matriculei no curso de direito e fui aprovada em novo concurso, do Tribunal Regional Eleitoral do Rio. Agora, tenho opções e deixei de ter vergonha. Penso em ser juíza ou procuradora.
O nome com o qual fui batizada morreu em 2019. Curiosamente, consegui registrar o meu atual, Victória, na certidão de nascimento e no RG, graças a uma decisão de um juiz de primeiro grau que citava jurisprudência do STJ. Não é um detalhe: um universo se abriu, trazendo um sentimento essencial de dignidade e liberdade. Ganhei uma existência. Antes, evitava ir a uma simples consulta médica. As pessoas chamavam o nome de um homem, aí aparecia eu, uma mulher. Foi um tempo complicado. Não havia nem retratos meus na casa dos meus pais, apesar de eles me darem todo o suporte. Felizmente, minha vida avançou. Acho que o fato de me cuidar, de me acharem bonita e de ter uma boa condição social me ajuda.
De modo geral, sempre fui respeitada no STJ. Mas houve episódios de transfobia no meio do caminho. Um deles, de preconceito explícito, envolveu um funcionário terceirizado e está sub judice, em segredo de Justiça. Mas as coisas vêm mudando de pouco tempo para cá. Quando você ingressa no STJ, não perguntam mais seu sexo, mas o gênero, que pode ser mulher ou homem trans, não binário e tantos outros. Acho que contribuí para isso no período em que ocupei o posto de coordenadora de Diversidade. Há ainda o que avançar, claro. Mesmo o número de mulheres nos tribunais é pequeno. A presença de pessoas como eu é um incentivo para que as estruturas se modifiquem. A instituição passa a olhar questões antes invisíveis. E começamos, enfim, a falar abertamente de um assunto que habitava o rol dos tabus. Um alívio. O preconceito anula a capacidade de pessoas competentes. Hoje, posso dizer: exerço plenamente o meu talento.
Victória da Silva em depoimento dado a Maiá Menezes
Publicado em VEJA de 21 de Junho de 2023, edição nº 2846