Nunca foi uma fria. Na Grécia Antiga, imergir em bacias de gelo era encarado como fonte de relaxamento e socialização, palco de muita conversa entre uma tina e outra, em evidente tempo sem redes sociais. Depois, o médico e filósofo Cláudio Galeno (129-216) empregou a água glacial como forma de aliviar a febre dos gladiadores romanos. Há evidências de possíveis efeitos terapêuticos para a fisiologia humana que remontam a 3500 a.C., todas elas contidas no chamado Papiro Edwin Smith, batizado com o nome do egiptólogo que o descobriu, no fim do século XIX. Trata-se de um dos mais antigos tratados da medicina. A ideia, contudo, ficou congelada por muito tempo. Até que, na década de 1960, a confirmação científica de que as baixas temperaturas aceleram a recuperação física, reduzindo a inflamação, serviram de incentivo para que a prática fosse adotada por esportistas de alto rendimento. Virou coisa séria.
Mas como tudo que é sério faz caminho de volta, no acelerado mundo de hoje, ampliado pela internet, brotou recentemente uma nova onda: a de famosos ou quase famosos banhados de gelo. Em fotos e vídeos compartilhados maciçamente propagam-se as supostas vantagens da ideia. A tendência é tão popular que a hashtag #coldplunge (mergulho frio, em tradução livre) já conta com mais de 2 bilhões de visualizações no TikTok. As estrelas mais assíduas atribuem à modalidade — tal qual gregos e troianos da antiguidade — bem-estar para mente e corpo. Sim, é real, mas é bom estar atento a estudos que confirmem os bons resultados. Não há nada ainda, porém, do ponto de vista científico, que assegure sobejamente a ilação direta entre gelo e ânimo. O casal Justin e Hailey Bieber puxa a fila dos que dizem tirar proveitos emocionais da prática. A modelo, neta do pianista brasileiro Eumir Deodato, garante que o rito a ajudou com a ansiedade e o humor. Já o astro pop surpreendeu a organização do Rock in Rio no ano passado com uma exigência inusitada: 80 quilos de gelo em uma banheira só dele nos camarins do evento. Lady Gaga e Harry Styles também entraram na onda. Ela diz sofrer de fibromialgia — doença crônica que provoca dor e fraqueza generalizada dos músculos. Madonna, sempre Madonna, que parece estar na vanguarda de tudo, é outra que diz banhar-se sem medo de sair tremendo.
Mas, afinal, funciona? Do ponto de vista muscular, tudo indica que sim. Reafirme-se, como sabe a turma do esporte, a capacidade regenerativa. “O contato com temperaturas de 10 a 15 graus, por um tempo máximo de dez minutos, é responsável por ativar de forma rápida e eficaz a parte do cérebro responsável pelo relaxamento”, diz o fisiologista do time principal do Botafogo, Dailson Paulucio. Mergulhar em águas ainda mais geladas é um processo desafiador e gradativo. Nos primeiros instantes, o organismo entra em “modo de sobrevivência”, o que aumenta a circulação de sangue e desencadeia a produção de hormônios, como a noradrenalina e o cortisol. Estudos confirmam o reforço da imunidade e aceleração da atividade metabólica, que pode ser útil em casos de depressão.
Mas não há mágica. Um vasto estudo conduzido por pesquisadores da Universidade Ártica da Noruega averiguou mais de 100 artigos. A conclusão: funciona, de algum modo, embora exista longa estrada de investigação para não tornar o recurso uma brincadeira irresponsável. “Ninguém deveria fazer isso sem um check-up médico preventivo”, diz Mike Tipton, professor de fisiologia humana da Universidade de Portsmouth, e com mais de quatro décadas dedicadas a entender os mecanismos de sobrevivência no frio. A restrição maior é para os cardíacos, pois o aumento de uma proteína que deixa o indivíduo em estado de alerta pode levar a ataques do coração.
Tudo somado, entre prós e contras, o calorão deste novembro brasileiro parece alimentar o sucesso do mergulho, como se fosse um oásis. A atriz Rayssa Bratillieri, de 26 anos, decidiu ler a respeito de uma técnica popularizada pelo atleta radical Wim Hof — que une trabalho respiratório com exposição ao frio, e leva o nome de seu criador. Não demorou muito para ela e o namorado embarcarem na aventura Hof. O primeiro passo foi comprar um freezer, daqueles horizontais, que logo integrou a decoração da sala e o cotidiano do casal. “As imersões quase diárias me ajudaram a ter mais disposição para as gravações e a controlar a minha mente”, diz Rayssa, no ar em Elas por Elas, da TV Globo. “Me tiram da zona de conforto.” Sair da zona de conforto, brrrrr…., é uma certeza — mas sabe-se lá para que outro campo encaminha, porque há risco de choques desnecessários. O cuidado é vital. Hipócrates (460 a.C.-377 a.C.), o pai da medicina, desde sempre louvou a relevância da água como inesgotável fonte de cura. Tê-la gelada é outra conversa, e convém zelo para não entrar numa fria.
Publicado em VEJA de 24 de novembro de 2023, edição nº 2869