Desde criança, meu sonho sempre foi ser cantora. Por isso, fiquei feliz ao ser contratada para interpretar clássicos de jazz e bossa nova em um restaurante de Brasília, em outubro de 2021. Mas a alegria deu lugar a um pesadelo. Sou uma mulher negra e já sofri inúmeros casos de racismo implícito, como ser seguida por seguranças em lojas de shopping. Em meus 36 anos de idade, porém, nunca havia sido vítima dessa odiosa violência de maneira tão explícita como ocorreu durante um de meus shows no local. O restaurante já estava quase fechando quando um grupo de amigas chegou. Muito animadas, elas pediram ao garçom para eu cantar Fly Me to the Moon, clássico de Frank Sinatra que estou acostumada a interpretar em minhas apresentações e já tinha, inclusive, cantado naquela noite. Atendendo ao pedido, repeti a canção e as amigas se levantaram para dançar perto do palco, o que achei bem divertido. Ao final, duas delas voltaram para a mesa, mas a publicitária Valkíria Tavares de Moraes subiu no palco e veio conversar comigo. Achei que ela ia elogiar a música ou pedir outra canção. Na realidade, ela queria me dizer que eu havia errado a letra. Fiquei constrangida e minha reação foi esboçar um sorriso nervoso. Pedi desculpas, disse que iria revisar a letra no tablet para não cantar errado novamente. A mulher, no entanto, não se acalmou e insistiu várias vezes que eu havia errado a palavra words. Como não reagi, ela bateu duas vezes no meu braço bem forte e disse: “Aprende a cantar, sua negra”. Fiquei em choque. Quando ela desceu do palco, continuou batendo palmas de maneira debochada e falou para mim: “Você tem que ter respeito”.
Sou nascida e criada em Brasília, para onde meus pais emigraram do Maranhão e de Minas Gerais para trabalhar. Cresci na cidade-satélite de Ceilândia, no subúrbio do Distrito Federal, e cursei direito graças uma bolsa integral que consegui por meio do Enem. Apesar do curso superior, não desisti da meta de ser cantora. Hoje, eu e meu marido, que também é músico, conseguimos nos manter assim. Amo cantar jazz justamente por ser uma música negra que também veio da periferia. Isso só aumentou minha revolta com o que estava acontecendo naquele dia. Após a agressão, eu olhei para o músico que me acompanhava e comecei a chorar. A gerente do restaurante, que viu tudo, veio falar comigo e disse que eu poderia terminar o show. Apesar de ter consciência de que havia sofrido uma agressão racial, fiquei sem reação. Outra cliente que testemunhou tudo perguntou se eu queria chamar a polícia e eu disse que sim. Quando os policiais chegaram, contamos o que aconteceu e fomos para a delegacia registrar queixa. Eles também ouviram a mulher, mas não a prenderam. Uma das amigas chegou a dizer que era delegada, mas eu não sei se era verdade.
Após um ano de processo, a Justiça condenou recentemente a publicitária a um ano e quatro meses de prisão em regime aberto e multa de 5 000 reais por injúria racial. Fiquei feliz com o resultado, mas esperava uma pena maior. A condenação não apaga o racismo. A boa notícia é que desde o dia 11 de janeiro uma nova lei equiparou o crime de injúria racial ao de racismo — cuja pena é maior, de dois a cinco anos. Infelizmente, a lei não entrou em vigor a tempo para atingir minha agressora, mas punirá de agora em diante outros casos semelhantes ao meu e que, tristemente, continuam a acontecer no país. Depois disso, fiquei conhecida em Brasília e surgiram oportunidades para eu cantar em outros eventos. Fiz desse limão uma limonada. Desejo cantar em todos os lugares e não vou deixar esse caso me anular, porque, do contrário, a gente acaba se sentindo inferior para ocupar nosso espaço na sociedade. Eu posso e tenho o direito de estar onde eu quiser.
Andresa Sousa em depoimento dado a Felipe Branco Cruz
Publicado em VEJA de 1º de fevereiro de 2023, edição nº 2826