Às vezes, a sensação de que existe um descompasso entre o sexo biológico e a identidade de gênero ocorre bem cedo na vida e nunca é trivial. É uma descoberta delicada, quase sempre acompanhada de angústia, medo e a face estúpida e inaceitável do preconceito. O fenômeno, que até menos de uma década atrás era considerado uma doença a ser debelada, vem gradativamente deixando o escaninho dos assuntos impronunciáveis e ganhando rosto — 1 milhão de brasileiros e 35 milhões de pessoas mundo afora hoje se classificam como transgêneros, a imensa maioria enveredando pela trilha das transformações no próprio corpo. Como o mundo não para de se abrir à diversidade das manifestações humanas, porém o que se observa agora é uma mudança de rota por uma parte da população trans, que busca o caminho de volta, interrompendo ou mesmo revertendo a transição de gênero — processo já conhecido como “destransição”.
O retorno em uma decisão tão complexa — que pode envolver medicamentos para frear a puberdade, a introdução no organismo de uma batelada de hormônios do sexo oposto e cirurgias que alteram semblante e corpo — é um desdobramento percebido em 13% dos transgêneros, de acordo com um recente levantamento da Escola de Medicina de Harvard. Observados apenas os que engatam em tratamento hormonal, um de cada três larga o processo no meio. As razões elencadas revelam que, embora avanços civilizatórios tenham atenuado a rejeição, ela ainda se faz presente no cotidiano dessas pessoas — tanto assim que cerca de 80% dos “destransicionados” relatam não ter aguentado a elevada pressão no entorno. Outros admitem desconforto não só com a imagem pós-mudanças, mas também com o novo gênero, desejando retornar ao que eram. Também a culpa é mencionada com frequência.
Como há até agora pouco conhecimento acumulado no campo das destransições, faltam estatísticas para melhor mapear o universo, mas sobram depoimentos da classe médica imersa no dia a dia de ambulatórios e salas cirúrgicas. “Cabe ao profissional de saúde facilitar a transição quando o paciente dá sinais de convicção e, ao mesmo tempo, saber freá-la se capta algo mal resolvido, o que nem sempre acontece”, diz a psiquiatra Carmita Abdo, do Programa de Estudos em Sexualidade da USP. A VEJA, o britânico Ritchie Harron, 35 anos, conta que consumiu hormônios e se submeteu a uma operação de redesignação sexual, com o qual se identificou por sete anos, não sem altos custos. “A mudança não resolveu minha ansiedade e depressão e acabou por agravá-las”, reconhece ele, que optou pela reversão há dois anos e atualmente se apresenta como um homem gay. “O tratamento psicológico que recebi foi muito ruim, me induzindo à mesa de operação”, avalia.
Isso não quer dizer que a trilha da transição não deva ser percorrida, mas sinaliza que o passo adiante jamais pode ser dado sem o amparo de uma equipe multidisciplinar no sentido mais amplo, com endocrinologistas, psiquiatras e psicólogos prontos para emitir uma opinião equilibrada. A ciência ainda procura decifrar o desencontro entre mente e corpo, mas a linha mais aceita envolve alterações cerebrais e hormonais na gravidez que levariam a essa condição, tecnicamente chamada de “disforia de gênero”. Desse modo, a compreensão sobre o próprio gênero não passa por uma escolha pura e simples, mas se baseia em uma característica individual inata — trajeto que costuma envolver sofrimento até tudo se tornar mais claro. Evidentemente, nem todo mundo que vive uma ebulição dessa natureza apresenta tal condição — a insatisfação com o gênero pode ter raízes fincadas em um caldeirão de emoções moldado pelas circunstâncias, configurando uma fase. “É preciso cautela para empreender uma mudança tão significativa “, ressalta Carmita Abdo.
Quando a decisão é tomada precocemente, com o corpo em formação, os riscos de um equívoco aumentam exponencialmente. Nos Estados Unidos, os holofotes estão voltados para o caso de Chloe Cole, que, aos 12 anos, infeliz com a imagem projetada no espelho, concluiu ser trans. Meses mais tarde, começou a tomar bloqueadores de puberdade e testosterona e, aos 15 anos, tirou as mamas. Não deu um ano, e ela se entendeu novamente como menina. Hoje, com 18 anos, processa a clínica que a tratou, alegando não lhe ter apresentado vias menos drásticas nem provido suporte psiquiátrico. “Falaram assim para meus pais: ‘Vocês preferem uma filha morta ou um filho vivo?”, lembra Chloe, que reimplantou os mamilos, o que ainda lhe traz incômodo, e virou uma indesejável bandeira nas mãos de ultraconservadores que se alimentam de argumentos reacionários. A inglesa Keira Bell, 23, tornou-se outro desses símbolos, e sua história, carregada de aflição, se desdobrou em uma mudança concreta. Movido por seu processo, o Supremo Tribunal inglês definiu que menores de 16 anos, idade dela à época, não têm a maturidade requerida para o uso de bloqueadores hormonais. “Me permitiram seguir em frente com as ideias que eu tinha na adolescência, quase uma fantasia”, diz Keira, que se destransicionou.
No Brasil, a lei permite que a terapia hormonal seja aplicada a partir dos 16 anos, enquanto as cirurgias — como a extração dos órgãos reprodutores e a construção de genitais — podem ser realizadas apenas após os 18 anos. No rol das exigências, consta o monitoramento ao longo do ano que antecede o princípio do processo. Nos Estados Unidos, a lei é menos rígida, ao passo que França, Finlândia e Suécia vêm postergando a permissão de tratamentos hormonais, justamente para que a virada de página se dê em solo mais firme. Mesmo com adultos, porém, a dureza pode se impor. Aos 17 anos, o chileno Nicolás Raveau já se via como mulher, mas aos 37 encarou hormônios e suavizou com bisturi os traços masculinos Eis que ele voltou a se identificar como homem e, há cinco anos, suspendeu os hormônios. As consequências logo vieram. “Perdi muitos amigos trans”, diz Nicolás, que nunca largou o trabalho social com pessoas trans e criou um grupo de apoio para pessoas que destransicionaram.
Como tudo é relativamente novo nesse campo, a medicina ainda está aprendendo como reverter os efeitos da transição. Na área cirúrgica, a ciência atua em caráter experimental e, em sistemas de saúde como o SUS, a volta atrás não está contemplada. A maior parte dos relatos dados a VEJA cita os incômodos da destransição, mas trata em especial das feridas psicológicas. “Me senti fragilizada demais para seguir com a transição. Havia sido expulsa de casa, precisei parar de estudar e dependia de favor para comer”, lembra a potiguar Aylla Devereaux, 21, que havia iniciado o processo aos 12, deu uma pausa seis anos mais tarde e agora, convicta, retomou a transição. Arrepender-se de decisão que mexe tão fundo na definição de quem somos é algo a ser incondicionalmente respeitado, mas em nada ofusca a caminhada de tantos outros, que ganharam vida mais feliz depois de abraçarem o gênero com o qual verdadeiramente se identificam.
Publicado em VEJA de 29 de março de 2023, edição nº 2834