Demora para chegar, demora para voltar. Demora um pouquinho para ajustar biologia ao fuso, fuso à agenda, agenda à rotina nova. Demora ter rotina nova. Demora para aprender tudo outra vez: tirar documento, conseguir autorização, carimbar papéis. Demora ter um novo número de celular que não seja o de turista, que não seja o limitadíssimo e caro. Demora decorar o número — no meu caso, desisti.
Demora para abrir conta em banco, demora para ter dinheiro que justifique ter conta em banco. Demora nadinha gastar este dinheiro. Demora pensar sob a lógica do dinheiro que não se chama mais real.
Demora para conseguir casa, demora para se sentir em casa. Demora mudar de casa e mudar e mudar até encontrar a casa que será realmente a casa. Demora para aprender a língua no ouvir, demora um tanto mais ainda para aprender a língua no falar. Demora anos para encontrar a palavra certa, na hora certa, do jeito certo. Demora décadas para encontrar a palavra bonita, encaixar no verso perfeito, escorregar com jeito, assumir do idioma os trejeitos.
Demora descobrir qual o melhor mercado, a melhor padaria, o cinema mais perto, a única academia, a livraria com estante internacional, o melhor bar. Demora saber qual é a melhor pedida no bar. Demora muito mais ter um amigo para conversar no bar.
Demora para decorar o novo endereço, com CEP e tudo. Demora para casa e lar se reencontrarem e reentrelaçarem como sinônimos enamorados. Demora estar seguro no ir e vir, demora achar que já sabe o caminho dos lugares, demora mais ainda realmente saber o caminho dos lugares. Demora definir como naturais os lugares.
Demora reconhecer o canto dos passarinhos, achar ladeando alguma rua a árvore mais fotogênica, entender a hora do pôr do sol. Demora saber para que lado fica o mar. Demora conhecer os nomes dos artistas, as músicas do cancioneiro, os poemas importantes, o hino nacional.
Demora saber em quem votar e contra quem torcer
Demora para conseguir consulta médica, e antes demora para conseguir o cartão que dá acesso à demora de conseguir consulta médica. Demora para tirar nova carteira de motorista. Demora para aprender a ler as placas diferentes e demora para as entender completamente. Demora para conseguir direito a parcelar a compra de um carro. Demora.
Demora saber em quem votar e contra quem torcer. Demora reconhecer os discursos perigosos entre alhos e bugalhos de outra língua e outra tradição. Demora também identificar os discursos que valem a pena.
Demora olhar e não se espantar, não estranhar, não parecer um viajante admirador. Demora tornar natural o exótico, óbvio o extravagante, normal o extraordinário. Demora banalizar o que os olhos veem. Demora também um tanto grande banalizar o que o coração sente.
Demora entender que saudade é coisa boa. Demora esquecer o sabor do pastel da feira de quinta-feira pertinho. Demora se acostumar com outro paladar, outro clima, outras intensidades. Demora aprender a se vestir no frio, a lidar com a neve, a saber que as quatro estações são distintas, definidas e definidoras. Demora assimilar que o tempo tem caráter. Demora entender que tomar sol é importante, essencial.
Demora conhecer o vizinho que vende ovo, o vizinho que entende de jardinagem e dá dicas sobre, o vizinho que vende leite, o vizinho que bisbilhota, o vizinho que gosta de festas, o que não gosta, o vizinho que palpita e o que se fecha, o vizinho que tem horta e de vez em quando dá um pé de alface. Demora sobretudo conhecer os vizinhos.
Demora completar a reinvenção de si mesmo. Demora bastante de estrangeiro se confundir com o daqui, de gringo se fazer de louco local, de imigrante sentir raízes aprofundando-se cheias de ramificações, nuances, sentimentos e calosidades no solo antes alienígena agora autêntico, conforme, exato, sob medida.
Demora, mas chega a hora em que pessoa e terra rimam, nefelibatas pés fincam histórias. Demora, mas chegada esta hora não tem mais embora.
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