A tradicionalíssima lanchonete Canter’s Deli, de Los Angeles, é conhecida por sanduíches de carne (de pastrami ou enlatada), bebida barata e serviço 24 horas – tríade de sucesso para atrair jovens de todos os cantos da cidade, a qualquer hora do dia. De Jim Morrison a Guns n’ Roses, a lista de fregueses célebres que curtiram um sanduba entre apresentações informais é extensa, muito embora hoje os roqueiros da pesada tenham cedido lugar para hippies e músicos da cena indie. Foi em uma das noites de open mic (microfone aberto, em tradução literal) da casa que o jovem Josh Conway, pela primeira vez no controle do som, ficou boquiaberto. Ele estava prestes a encerrar as apresentações quando o sétimo nome na lista começou a cantar, e María Zardoya tomou o palco.
“Eu disse ‘uau’ já na primeira nota que saiu da boca dela”, contou Conway ao jornal Los Angeles Times. O ano era 2016, e a porto-riquenha María tinha acabado de se mudar para Los Angeles, depois de passar boa parte de sua vida em Atlanta. Quando ela terminou de cantar um set acústico com sua voz murmurada e aveludada, ele a abordou com uma proposta: “Você quer escrever e gravar e sair comigo?” Cinco anos depois do primeiro encontro, o trabalho conjunto dos músicos (junto com um relacionamento apaixonado de longa data) é o coração da banda The Marías, quarteto com a moça aos vocais, Conway na bateria/produção e outros dois amigos íntimos, Edward James e Jesse Perlman, no teclado e guitarra, respectivamente.
Apesar de ainda pouco conhecido no Brasil, o grupo é um dos mais badalados representantes do indie rock da atualidade, e acaba de lançar seu disco de estreia, Cinema, que sucede a dois EPs intitulados Superclean I (2017) e Superclean II (2018). Mas classificar o The Marías em um único gênero seria reduzir seu alcance: a banda é conhecida por uma miscelânea refinada de sons que vai do soul ao dream pop, passeando pelo rock psicodélico e por grooves jazzísticos que remetem a ritmos latinos. O fato de María entoar letras sensuais em inglês e espanhol estreita o elo com os hermanos do continente americano, com Cariño sendo o single mais emblemático até hoje. São camadas e mais camadas de hibridismo – atuais pela inovação, e vintages pelas referências. Os artistas se inspiram em Radiohead e Tame Impala, mas não só: vão de Norah Jones, The Strokes, Billie Holliday até aos filmes de Pedro Almodóvar.
O cineasta espanhol, aliás, é uma das inspirações para o disco de estreia (a música Talk to Her leva até o nome de um de seus filmes mais conhecidos). É no single Hush que os paralelos ficam mais claros. Mais que isso, Cinema é um ode às raízes da banda, que começou na produção de trilhas sonoras para o cinema e a TV a pedido de um colega. “Nada do que escrevemos apareceu em algum filme ou programa de TV”, disse María ao Los Angeles Times. “Mas tiramos boas músicas. Eventualmente, percebemos que deveríamos continuar com isso e começar a tocar em shows.” Escolha acertada: não demorou muito para que as apresentações da banda tivessem seus ingressos esgotados, e convites para festivais como Coachella e Tropicália começassem a aparecer. As audiências passaram a responder ao apuro musical do grupo (o guitarrista Jesse Perlman já denunciou mais de uma vez o perfeccionismo de Conway em deixar cada trecho nos trinques), mas também ao seu visual distinto e compatível com os novos tempos, em especial nos Estados Unidos.
“Eu não acho que existam muitas bandas de uma cantora latina com um monte de caras brancos judeus por aí”, brinca María, ao mesmo tempo em que reconhece que a mistura bilíngue é ressonante a uma geração de jovens americanos que cresceram em lares anglo-hispânicos. “Hoje há mais pessoas como eu por aí, e o que vimos e vivemos é o que a nossa música quer passar”. Para quem pensa que misturar romance com trabalho não funciona, The Marías mostra que, ao menos no pop, às vezes isso pode dar certo – e ser muito inspirador.