Desde tempos ancestrais, a humanidade nutre uma relação de amor e ódio com os fungos. Ao mesmo tempo que alguns desses organismos proporcionam dádivas como a cerveja e os antibióticos, outros destroem plantações e causam doenças. Nenhum gênero, no entanto, é tão fascinante e assustador quanto o Ophiocordyceps. Ele infecta as formigas e, em grosseira analogia, as transforma em “zumbis”, fazendo com que se movam até um ambiente propício para sua reprodução. Mas o que aconteceria se, hipoteticamente, esse fungo sofresse uma mutação e agisse no sistema nervoso central humano, nos transformando também em zumbis? A perturbadora premissa sustenta a série The Last of Us, que estreia em 15 de janeiro na HBO Max.
The Last of Us Part I – PlayStation 5
Baseada no videogame de mesmo nome do PlayStation, com 30 milhões de cópias vendidas no mundo, a produção demonstra que, embora o pior da pandemia do coronavírus felizmente pareça ter passado, o apetite por enredos que imaginam o apocalipse continua firme e forte. Se epidemias provocadas por vírus viraram clichê dominante nos filmes e programas que exploram o tema, a opção de The Last of Us por um inimigo como os fungos — pouco lembrados, mas tão potencialmente letais — já eleva a série a um patamar criativo notável.
O argumento da trama surgiu lá atrás, em 2013, com o lançamento de um dos games mais bem-sucedidos das últimas décadas. Criado pelo israelense Neil Druckmann quando ele tinha pouco mais de 30 anos, The Last of Us oferece uma experiência imersiva em certa aventura periclitante. Após a infestação do fungo, que surge na Indonésia e rapidamente destrói a civilização, o herói Joel — vivido na série pelo chileno Pedro Pascal, de Narcos e Game of Thrones (leia a entrevista abaixo) — vaga por cidades americanas que retrocederam a um estado bárbaro, em meio a uma ditadura militar feroz, terroristas e o pior: zumbis com medonhas cabeças de cogumelo famintos por morder outros humanos e espalhar a praga. Devastado pela perda da filha, Joel acha uma razão de viver na missão de proteger e levar a adolescente Ellie (Bella Ramsey, também de GoT), última humana imune ao fungo, a um laboratório onde se tentará produzir a cura para o mal.
A tarefa de Joel e Bella é tão excruciante quanto o tabu que a própria série se propõe a quebrar. Ao longo dos anos, transpor o argumento dos games populares para o cinema ou a TV tem sido uma tarefa inglória — e frequentemente malsucedida. Desde a primeira e terrível adaptação de Super Mario Bros., em 1993, passando pela constrangedora Lara Croft: Tomb Raider (2001), com Angelina Jolie, até a franquia Resident Evil, protagonizada por Milla Jovovich, todas as tentativas viraram motivo de chacota. Até a Naughty Dog, empresa que criou The Last of Us, sucumbiu à sina: seu primeiro filme, Uncharted: Fora do Mapa, lançado no ano passado e baseado no game homônimo, é tão desconexo que não agradou nem aos fãs.
The Last of Us Remasterizado Hits – PlayStation 4
Ao contrário dos desastres anteriores, The Last of Us exibe trunfos que explicam o interesse de uma companhia como a HBO, notória por investir em tramas densas e originais. O mais básico deles vem de uma qualidade de sua fonte inspiradora: o jogo criado por Druckmann é caso exemplar da evolução que levou os games a se tornarem uma força motriz do entretenimento — em 2022, estima-se que o setor tenha faturado 184 bilhões de dólares, sete vezes mais que o cinema. O pulo do gato é o roteiro competente — conforme seu criador contou a VEJA, ele está a serviço de contar uma história dentro do jogo, e não apenas da diversão momentânea.
De fato, a saga apocalíptica tem coisas profundas a dizer sobre a moral e a civilização. Para sobreviver ao caos, a dupla enfrenta desafios que vão além de apenas escapar dos infectados: os maiores perigos vêm de negacionistas, grupos mercenários e outros tipos humanos querendo tirar proveito da desgraça coletiva — qualquer semelhança com o mundo ou o Brasil real da pandemia não será fortuita. “Quando estávamos pesquisando para criar o jogo, olhamos como a humanidade respondeu a surtos mortíferos como o da gripe espanhola”, explica Druckmann.
The Last of Us Part II – PlayStation 4
Para transpor toda a tensão para a série, ele se aliou a Craig Mazin, criador da premiada Chernobyl, que retrata o devastador acidente nuclear soviético de 1986. “Tanto em Chernobyl quanto em The Last of Us a história é também sobre ciência”, diz Mazin. O ingrediente para dar liga à receita é a relação entre o turrão herói de Pascal e a garota rebelde vivida pela britânica Bella. Como no game, os dois desenvolvem uma afeição de pai e filha — com direito a lances de alívio cômico no horror da distopia. “Mesmo no apocalipse você tem de se divertir. Não dá para viver sem contar piadas e falar palavrões”, brinca Bella. Na TV ou no cinema, o fim do mundo ainda vai render muito.
“Não tenho habilidade com games”
O chileno Pedro Pascal, de 47 anos, fala sobre como foi interpretar o protagonista de The Last of Us.
Viver Joel, um personagem que só existia nos games, foi um desafio peculiar? Eu não queria que o público sentisse a mesma coisa que sente ao jogar o game, mas que soubesse que a experiência de meu personagem no jogo foi importante para o desenvolvimento da série.
Como se deu essa adaptação na prática? A experiência do jogo é quase como o desenrolar de um livro, só que de forma imersiva. Para mim, foi importante pesquisar o game a fundo para descobrir o que ele estimularia na minha mente e no meu coração. Nos mantivemos fiéis à nossa inspiração original, mas expandimos a história e criamos surpresas.
Já conhecia o jogo? Eu cheguei a me arriscar nele, mas não tenho habilidade nenhuma com videogames. Eu jogava com meu sobrinho. Ele, contudo, perdia a paciência: tomava o controle de mim e me fazia apenas vê-lo jogar.
Publicado em VEJA de 11 de janeiro de 2023, edição nº 2823
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