Quando sentou para escrever sua próxima novela das 9 na Globo, João Emanuel Carneiro tinha uma coisa em mente: queria criar uma história que não fosse ambientada em um cenário urbano, muito menos rural — dada a sequência exaustiva de folhetins com essa temática, dos remakes de Pantanal (2022) e Renascer (2024), passando ainda por Terra e Paixão (2023). O autor, então, bolou a ideia de uma trama que se passasse no litoral, mais precisamente em Angra dos Reis, e viu aí a oportunidade perfeita de apresentar um retrato mordaz dos super-ricos que há gerações são donos de ilhas no arquipélago luxurioso na costa do Rio de Janeiro. A inspiração também veio, admitiu o próprio noveleiro em entrevista a VEJA, de séries estrangeiras que dissecam esse universo dos ricaços e seus dramas, caso das afiadas The White Lotus e Succession, ambas da HBO e disponíveis na Max. “Assisti muito a essas produções todas, e acho que a novela está se amalgamando com a série, e vice-versa. Bebem uma da outra”, explica Carneiro (leia mais abaixo). Assim surgiu Mania de Você, novelão que estreou no começo do mês e tem tudo para virar uma das tramas memoráveis de Carneiro, autor de sucessos como A Favorita (2008) e Avenida Brasil (2012) — último folhetim do horário nobre a parar o Brasil para acompanhar seu eletrizante final.
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Na intenção de repetir o feito de doze anos atrás, o autor fez a emissora investir em gravações em Portugal e em mansões extravagantes de Angra, onde o mar é cortado por lanchas e as encostas de Mata Atlântica ostentam construções que são fortalezas do luxo. O local é palco dos dramas e paixões dos ricaços — e também dos pobres. Afinal, nem mesmo os super-ricos escapam de lidar com os menos abastados, que lutam para sobreviver como pescadores e serviçais às margens das ilhas privadas, e trabalham (ou mesmo namoram) com os poderosos. Para além da guerra de classes tradicional dos melodramas, o trunfo é algo mais profundo: a satisfação do público, em sua maioria composto pelas classes C, D e E, de ver os ricos sofrerem. “As pessoas talvez queiram descontar alguma raiva ou frustração nessas figuras”, especula o autor.
Disse Não Disse – João Emanuel Carneiro
Quanto a isso, Mania de Você não decepciona. A trama tem um quarteto de protagonistas que se alternam de forma ambígua entre os papéis de mocinhos e vilões, revezando suas posições sociais, inclusive. Uma hora Luma (Agatha Moreira), herdeira de uma das ilhas, está por cima, cercada por luxo e sonhando em se tornar uma grande chef de cozinha, e em seguida está por baixo, após ter sua fortuna roubada por Mavi (Chay Suede), um hacker pobretão e malandro. O usurpador se infiltrou na vida da patricinha por ser filho da cavilosa governanta da família, Mércia (Adriana Esteves), com o empresário Molina (Rodrigo Lombardi), que criou Luma sabendo que ela é filha biológica de outro homem. Nesse ninho de cobras, a chegada da humilde Viola (Gabz) — suposta heroína da história — provoca uma catarse que muda a vida de todos. Namorada de Mavi e objeto de obsessão dele, ela se encanta por Rudá (Nicolas Prattes), um ativista ambiental da comunidade ribeirinha por quem Luma sempre foi apaixonada. O romance dos dois é posto em xeque após Molina ser morto com um tiro, e todos os personagens já mencionados até aqui virarem suspeitos.
O Talentoso Ripley – Patricia Highsmith
A revelação de quem foi o autor do disparo virá provavelmente no centésimo capítulo, quando o autor apresentará uma nova virada — artifício típico de Carneiro, que ama brincar com relações de poder. Em outra ponta da novela, a empresária Berta (Eliane Giardini), dona de várias propriedades do arquipélago, nem imagina que sua amada nora, Ísis (Mariana Ximenes), foi a mandante do assassinato de seu rebento, Henrique (Antonio Saboia), atropelado por uma lancha conduzida pelo amante de Ísis, Guga (Allan Souza Lima) — em uma sequência marinha à la The White Lotus e Ripley, da Netflix.
Box: Podres de Ricos – Kevin Kwan
Em meio à crise de audiência de novelas nos últimos anos, Mania de Você ainda patina no ibope, com apenas 22 pontos de média, e teve a primeira fase acelerada a fim de fidelizar o público — que costuma ficar de ressaca nas primeiras semanas de qualquer trama. De toda forma, Carneiro se provou capaz de surpreender antes, e sua nova empreitada já trouxe de volta um frescor de que os amantes de um bom novelão andavam carentes. A alta classe sofre — e o povo gosta.
“Abismo social é tema brasileiro”
João Emanuel Carneiro, 54 anos, falou a VEJA de suas inspirações e das reviravoltas de Mania de Você.
Por que quis trazer os super-ricos para as novelas, usando a elite de Angra dos Reis? O abismo entre as classes sociais é um assunto tão brasileiro. A elite de Angra no fundo é a elite carioca. Quis usar um cenário que não fosse rural nem urbano. Acho que é preciso descobrir lugares novos.
As novelas da Globo têm sofrido com a audiência. Pretende reverter esse cenário? Creio que a novela ainda não pegou, mas vai fisgar a audiência. E ainda mais na nova fase, que vai apresentar uma trama mais tradicional.
Séries como The White Lotus e Succession foram referência? Um pouco. Eu assisti muito a essas séries todas, e acho que aqui a novela está se amalgamando com a série e a série com a novela. Bebem uma da outra.
Publicado em VEJA de 27 de setembro de 2024, edição nº 2912