Um grupo de aventureiros esperançosos, de nacionalidades variadas, sobe no navio Kerberos, em Londres, rumo aos Estados Unidos. O ano é 1899, e as possibilidades no novo mundo parecem infinitas. A viagem, porém, toma um rumo inesperado quando, em alto-mar, a embarcação depara com o imponente Prometheus, um navio que desaparecera quatro meses antes sem deixar rastros. Surpreendentemente, não há no local nenhum sinal dos passageiros, exceto por um menino encontrado preso e, milagrosamente, vivo, dentro de um armário. Após o resgate da criança, o capitão Eyk Larsen (Andreas Pietschmann) recebe ordens expressas para afundar o Prometheus. Larsen se recusa a fazê-lo, convencido de que a destruição apagaria evidências de algum escândalo. A situação ganha tons mais sombrios quando passageiros do Kerberos começam a morrer, misteriosamente. Assim começa 1899, nova série da Netflix assinada pelo casal alemão Baran bo Odar e Jantje Friese, também criadores de Dark, sucesso de audiência da plataforma, entre 2017 e 2020.
Na linha de sua antecessora, 1899 transita por um emaranhado de tramas paralelas e oferece mais perguntas do que respostas. Mesmo sem entender nada em um primeiro momento, o espectador é instigado a seguir viagem. A expectativa é de que, no final, as pontas soltas sejam unidas — mesmo que isso exija uma pesquisa à parte na internet, enquanto os créditos sobem na tela da TV, para que todas as informações sejam devidamente assimiladas. Dessa forma, a dupla de roteiristas encontrou o meio de se destacar no vasto mar de lançamentos do streaming: para além de apresentar um enigma complicado, os criadores da série conquistam o público com o quebra-cabeça do trajeto — e fazem isso sem subestimá-lo. Logo, desafiam categorizações de gênero e quebram os limites dos temas a ser tratados: terror sobrenatural, drama psicológico e ficção científica se misturam a teorias da física quântica, viagens no tempo e questões filosóficas. “Nós adoramos brincar com os gêneros e com as expectativas do público”, disse Baran bo Odar a VEJA. “Dark foi uma ótima experiência para entender a medida certa do que entregar ao espectador para que ele continue interessado”, completou Jantje Friese. Essa medida também passa pelo trabalho de atuação. “Estamos sempre atentos para não revelar demais e manter o suspense em alta”, conta Pietschmann. O ator, aliás, até hoje carrega o fardo de ser “o homem enigmático” de Dark — seu personagem na série anterior é um spoiler ambulante, e seu nome pode estragar a surpresa de quem ainda não chegou ao final.
Assim como Dark parecia inicialmente mais um thriller sobre crianças desaparecendo — antes de se revelar uma intricada ficção científica, com direito a um apocalipse —, 1899 também não é apenas um drama de época de imigrantes viajando em um navio com problemas — e revelar mais do que isso seria imperdoável. Encenada majoritariamente dentro do navio, a produção abraça o amplo alcance internacional da Netflix ao envolver atores de nacionalidades variadas e suas línguas: estão presentes no roteiro falas em português, inglês, francês, espanhol, japonês e, é claro, o alemão. “Queremos celebrar todas essas culturas”, diz a atriz inglesa Emily Beecham, que interpreta Maura, uma médica em busca do irmão desaparecido no Prometheus.
O isolamento no ambiente restrito, com ameaças pairando por todos os lados, faz de 1899 um peculiar estudo sobre a natureza humana. Como é comum diante de perguntas difíceis, a religião vira escudo e arma dos que buscam respostas fáceis. Não demora para que a criança resgatada seja apontada como a razão sobrenatural dos males que tomaram o navio desde sua chegada. Em outro núcleo, tripulantes encaram a fragilidade do comandante como uma chance de sentir o gostinho do poder desafiando suas ordens. “Vemos como as pessoas reagem em um confinamento estressante. Há muitas metáforas no caminho”, afirma Beecham. Trata-se de uma viagem sombria — e saborosa.
Publicado em VEJA de 23 de novembro de 2022, edição nº 2816
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