A jovem Eda (Hande Erçel) ficou órfã cedo, mas aprendeu a ser florista na curta convivência com a mãe — e, mais tarde, projetaria uma carreira como arquiteta e paisagista. Após entrar em uma faculdade com bolsa de estudos, a mocinha até garimpa um emprego na Itália para o dia em que se formasse. Só que o futuro brilhante entra pelo ralo quando a empresa do milionário Serkan (Kerem Bürsin) corta o patrocínio de bolsas estudantis e deixa Eda sem ter como prosseguir no curso. Com ódio, a protagonista de Será Isso Amor?, disponível na HBO Max, confronta o ricaço e risca o carro de luxo dele. Termina, contudo, é se apaixonando pelo algoz, ao ceder a um plano maluco do bonitão de armar um falso noivado com ela para provocar ciúme na ex dele. Esse melodrama açucarado e mirabolante tem cara de novelão mexicano — mas é da Turquia, cuja dramaturgia peculiar vem ganhando força mundial com a ajuda do streaming.
Encantos da Turquia – Volume 1: Uma viagem pela história
Dividida entre os valores islâmicos e seculares, a Turquia se inspirou nos melodramas latinos para produzir as próprias obras do gênero a partir dos anos 1960. Mas, enquanto os folhetins foram se modernizando no resto do mundo de lá para cá, o país se viu preso a um conservadorismo que, até hoje, não permite cenas com beijos mais sôfregos na TV aberta. Os criadores locais compensaram a limitação com um artifício eficaz: carregam as tintas no sofrimento das heroínas, para êxtase de um público que não se importa com (e até prefere) a falta de contato físico entre os personagens.
Uma das profissionais responsáveis pela nova onda, Ayse Üner Kutlu, roteirista de Será Isso Amor?, atualmente a trama turca de maior sucesso da HBO Max, atribuiu o sucesso ao alto interesse por histórias de superação. “É muito difícil escrever novela na Turquia, especialmente porque o órgão censor pode encrencar. Não podemos fazer com que os atores e as atrizes se beijem ou façam amor na tela”, disse ela a VEJA. “A forma como contamos nosso enredo lembra os contos de fadas. Buscamos oferecer uma experiência emocional intensa.”
A fórmula atesta seu valor: hoje, a Turquia se impõe como um dos maiores exportadores mundiais de telenovelas, com os dramalhões locais chegando a cerca de 150 nações. A onda aterrissou aqui em 2015, quando a Band exibiu Mil e Uma Noites e Fatmagul: a Força do Amor. Embora essa última seja controversa — a protagonista é vítima de estupro coletivo e se apaixona por uma testemunha da violência —, ambas conquistaram bons índices de audiência. Como aponta o especialista em novelas Mauro Alencar, o apelo principal está na forma recatada de retratar figuras femininas. “Essas tramas não hesitam em mostrar a mulher oprimida no centro da narrativa. A mocinha passa por traumas e os supera por meio do amor de um homem violento, que se rende no final”, explica. “Ao apostar em romances leves, sem sexo nem beijos, com famílias unidas e respeito pelos mais velhos, as novelas turcas resgatam valores esquecidos”, complementa Gabrielle Ferreira, mestre em comunicação e expert em folhetins do país euro-asiático.
Com a ascensão no streaming, as histórias turcas, quem diria, agora arriscam uma liberdade inédita. O sucesso 8 em Istambul, da Netflix, ousa temperar o folhetim tradicionalista com um retrato sutil dos conflitos provocados por ideologias políticas no país. Já se veem mais carícias na tela, como ocorre em Um Milagre (versão turca de The Good Doctor) e A Agência. Outro hit da Netflix, Uma Nova Mulher, tem, inclusive, momentos picantes: a jornada de uma protagonista às voltas com um drama de vida e morte traz cenas de amor e nudez. Um avanço que rompe barreiras e abre margem para produções cada vez mais ocidentalizadas. Essas novelas estão aí para provar: na era do streaming global, vale até folhetim turco.
Publicado em VEJA de 5 de outubro de 2022, edição nº 2809
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