O Brasil, com razão, tem orgulho de suas novelas — uma tradição narrativa tão específica dos temas, ritmos e linguajares do país, e ao mesmo tempo tão apta a cruzar fronteiras e virar hábito e influência cultural além delas. Substitua-se agora “Brasil” por “Coreia do Sul”, e multipliquem-se o alcance e o impacto associados à palavra “novela”: eis o “dorama”, a vertente de produção que mais rapidamente ganha território em todo o mundo. Não só a quantidade e diversidade de doramas, porém, aumentam dia após dia nas plataformas de streaming (conheça alguns sucessos do gênero na pág. 82). Também o prestígio deles entre o público e a crítica vem crescendo de modo vertiginoso — um quesito em que Pachinko (Coreia do Sul/Estados Unidos/Canadá, 2022) já estreia com destaque absoluto. Tão ambiciosa quanto envolvente e tocante — além de magistralmente fotografada —, a série adaptada do best-seller de Min Jin Lee abarca a vida de três gerações da mesma família, começando na Coreia do início da ocupação japonesa (1910-1945) e avançando até o Japão rico e volátil de 1989.
Protagonizada por um elenco excelente e carismático, e criada e dirigida pelo americanos-coreanos Justin Chong e Kogonada, Pachinko é tanto “dorama” — uma generalização para todo folhetim de origem asiática — quanto “k-drama”, termo que designa a hoje dominante produção da Coreia do Sul. Com uma primeira temporada de oito episódios (há material no livro de Lee para pelo menos uma segunda leva), a série produzida e disponibilizada pela Apple TV+ reúne características de várias linhagens típicas do gênero. É um melodrama de alta estirpe mas é, sim, um melodrama. É em boa parte uma produção — belíssima — de época. Trata de dilemas sociais profundos, como muitos doramas de ambientação contemporânea. E, como tantos outros, entretece os dramas dos personagens em eventos históricos.
Pachinko, aliás, vai mais além: seu tema central é a pressão que a história com “H” maiúsculo exerce sobre a trajetória de Sunja, menina nascida de pais miseráveis na Coreia humilhada e catastroficamente empobrecida pelo domínio japonês, e a maneira como as escolhas de Sunja frente aos grandes acontecimentos — a expansão imperial japonesa, a II Guerra, as bombas atômicas de Hiroshima e Nagasaki, a Guerra da Coreia e a divisão do país — determina muito do percurso também de seus descendentes.
Ao contrário do livro de Lee, que faz esse trajeto pela ordem cronológica, a série se reveza constantemente entre suas várias linhas temporais, justapondo a Sunja da infância (a irresistível Yu-na Jeon) à da juventude (Minha Kim) e à da velhice (Yuh-jung Youn, a ganhadora do Oscar de coadjuvante por Minari), e sobrepondo também causas e consequências — o amor proibido com o gângster colaborador dos japoneses Hansu Koh (Min-ho Lee), que obriga Sunja a deixar seu vilarejo de pescadores rumo ao Japão; o despertar político que a mudança de país provoca no marido que a socorreu da vergonha (Steve Sang-Hyun Noh); e o futuro que essa conjunção de fatores forja para seu filho, Mozasu (Soji Arai), e para seu neto, Solomon (Jin Ha), um jovem e agressivo investidor que transita entre as culturas americana, japonesa e coreana sentindo-se um estranho em todas elas.
O próprio nome da série, aliás, anuncia essa conjunção entre acaso e escolha a partir da qual Sunja e os outros personagens, sobretudo o trágico Hansu, vão abrindo seu caminho. Os salões de pachinko — uma combinação de pinball e caça-níqueis muito popular no Japão — como aquele com que Mozasu sustenta a família são notórios por adulterar as máquinas para diminuir as chances dos jogadores, que dependem ainda em maior grau, portanto, da sorte e da habilidade para ganhar suas apostas. (O salão de Mozasu é, também, o cenário da gloriosa sequência de créditos da série.)
Os doramas são um fenômeno mundial: só no ano passado, a Netflix investiu 500 milhões de dólares na produção da Coreia do Sul, e plataformas exclusivas se popularizaram pelo mundo. Canais de vídeo sob demanda (VOD) como o Crunchyroll, forte em animes, o tailandês Line TV e o Kocowa, voltado para dramas e reality shows sul-coreanos, atraem legiões de “dorameiros”. O serviço de streaming Rakuten Viki, por exemplo, abriga variadas telenovelas asiáticas e possui mais de 27 milhões de usuários, e o Brasil já está entre os cinco países que mais acessam o site. Em que pesem as diferenças de idioma, culinária, modos e cultura, brasileiros e asiáticos têm uma paixão em comum: somos todos noveleiros.
Publicado em VEJA de 30 de março de 2022, edição nº 2782
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