Quando Travessia chegou à grade da Globo, em outubro de 2022, a promessa era ousada. A novela assinada por Gloria Perez prometia explorar o submundo da tecnologia, especialmente as deep fakes — vídeos com montagens falsas realistas –, além dos metaversos e a realidade virtual. O elenco também era promissor. A cantora e atriz Lucy Alves ganhou o protagonismo, acompanhada de nomes estrelados, como Rodrigo Lombardi, Romulo Estrela, Chay Suede e Cássia Kis — enquanto a contratação da influenciadora Jade Picon irritou o meio artístico, mas tinha uma razão de ser: a jovem recém-saída do BBB prometia manter a audiência que a pop Pantanal conquistara antes. Mas as muitas promessas caíram, uma a uma, ao longo dos últimos oito meses. Nesta sexta-feira, 5, após um excesso de histórias cíclicas e sem foco, a novela das 9 chega ao fim sem muito o que comemorar. O que era para ser uma investigação sobre os perigos e as possibilidades do mundo tecnológico acabou se resumindo a um robô que trabalha de garçom e efeitos vexatórios. A mocinha teve sua trama central esquecida e os bons atores perderam o brilho. Já o que não devia brilhar, brilhou, mas do jeito errado: Jade Picon virou piada na internet e Cássia Kis deixou seu talento se esvair nos absurdos da polarização política. Travessia, contudo, teve seus acertos — poucos, mas teve: saldo que a redime de ser um completo fiasco.
A quem interessar possa, a ideia inicial da novela correu assim: a protagonista Brisa (Lucy Alves) foi vítima de uma deep fake, quando um adolescente desocupado colocou o rosto dela no corpo de uma sequestradora de bebês. Ela quase foi vítima de um linchamento, fugiu e acabou presa por estar no lugar errado e na hora errada. O enredo peculiar, mas provocativo, para uma novela global caiu no limbo e ficou esquecido por meses, voltando só na reta final de modo risível: Oto (Romulo Estrela), grande hacker que é, descobriu que a foto era uma montagem apenas olhando a imagem rapidamente.
No quesito tramas envolvendo tecnologia, o folhetim foi criativo na concepção, mas ruim na execução. Um shopping no metaverso foi mostrado como um projeto de Guerra (Humberto Martins), mas o empreendimento virtual nunca saiu do papel — e se saiu ninguém lembra também. Haroldo, um robô-garçom causou ciúme em um garçom de verdade, Joel, interpretado por Nando Cunha — rendendo cenas de pura vergonha alheia. Para fechar o tema, o capítulo final promete trazer Grazi Massafera em um holograma como Débora, que revelará para Chiara (Jade Picon) que é sua mãe em um diálogo de meia dúzia de palavras.
Na esteira de novelas das 9 recentes que tentam humanizar seus vilões e mostrar que ninguém é 100% bom ou ruim, como Um Lugar ao Sol (de Lícia Manzo) e Amor de Mãe (de Manuela Dias), Travessia acabou esquecendo mesmo de criar um personagem detestável o suficiente para engajar o público. As maldades de Ari (Chay Suede) e Moretti (Rodrigo Lombardi), como fraudar uma licitação de prédio e roubar documentos em branco com assinaturas autenticadas em cartório, foram entediantes.
Entre os acertos da novela (ufa!), está a chegada tardia de Bia (Clara Buarque) que fez a ponta de um triângulo amoroso com Oto e Brisa. A filha de Carlinhos Brown (além de neta de Marieta Severo e Chico Buarque) encantou com sua voz e atuação em poucas cenas. Mas o maior ponto positivo da trama foi o retrato dos perigos da pedofilia virtual. Karina (Danielle Olimpia), vítima de um pedófilo interpretado por Claudio Tovar, proporcionou à atriz novata a chance de mostrar a potência de seu talento em sequências dramáticas, tanto de abuso sexual virtual quanto ao ter seu drama descoberto pela polícia. Uma utilidade pública importante que dá razão à passagem de Travessia pela TV — mas não a redime de seus pecados.
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Diante do fim, a sensação é que Travessia se tornou um saco de retalhos costurados por muitas mãos e sem seguir uma lógica, na tentativa de criar um conceito, que não ficou claro. Confusão pura. A novela das 9 será substituída por Terra e Paixão, de Walcyr Carrasco, que costuma engajar o público com suas tramas mirabolantes, bordões-chicletes e núcleos cômicos, como aconteceu em A Dona do Pedaço, em 2019. Superar a novela de Gloria Perez, afinal, não será uma tarefa tão difícil: qualquer melhora ínfima já dará à Terra e Paixão uma vantagem gigantesca sobre a predecessora, que se despede hoje, em uma morte lenta e dolorosa.