Horas após a morte de Silvio Santos, no sábado 17, aos 93 anos, sua família deu uma prova de fidelidade ao comunicador. Para decepção de muitos fãs, o clã anunciou que não haveria velório aberto: em respeito à vontade do maior ícone da TV brasileira, ele seria sepultado com discrição em uma cerimônia tradicional judaica para os íntimos. Logo em seguida, porém, a viúva Iris e as seis filhas de Silvio — Cintia, Silvia, Daniela, Patricia, Rebeca e Renata — tomaram outra decisão que, dessa vez, ia contra as instruções do homem do Baú. Avesso a bajulações, Silvio desejava que sua emissora, o SBT, não fizesse homenagens quando ele morresse. O canal hesitou, mas, diante da comoção, a família autorizou que se derrubasse sua programação para dar lugar a uma cobertura de tributos a Silvio. As filhas ousaram desobedecer para fazer aquilo que o pai lhes ensinara a vida inteira: a brigar por audiência com tenacidade — afinal, o SBT estava entregando ibope para a concorrente Globo, que se adiantou com programas especiais.
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Nos bastidores do império empresarial de Silvio, a postura das herdeiras não surpreendeu. Ao menos uma década antes de sua partida, causada por uma broncopneumonia decorrente de infecção pelo H1N1, o apresentador iniciara uma transição de poder para as filhas que a princípio despertou ceticismo, dadas as idas e vindas típicas do patrão — mas acabou tendo desenlace suave. A tal ponto que muitos, no mercado de comunicação ou na audiência, nem se deram conta de que Silvio, o visionário onipresente nos negócios por seis décadas, andava afastado do dia a dia nos anos recentes. Conforme revelou a VEJA uma fonte próxima à família, a pandemia de covid-19 teve papel determinante nisso. Tão logo veio o lockdown, Silvio sumiu por mais de um ano das telas. Quando retornou, já estava na trilha da aposentadoria. Apesar da repulsa à palavra “sucessão”, ele mudou sua percepção com a pandemia — que o deixou aterrorizado com a ideia de morrer e o fez desacelerar o ritmo até parar, saindo de cena à francesa, após gravar uma última edição do Programa Silvio Santos, em 2022, passando o comando à filha Patricia Abravanel.
A transição de poder no SBT e demais empresas do grupo — da Liderança Capitalização ao Baú da Felicidade, passando pela fabricante de cosméticos Jequiti — incluiu expedientes convencionais nesse tipo de mudança, como a contratação da consultoria americana McKinsey no início do processo, em 2015. Mas o rito seguiu um estilo bem Silvio Santos. Os cargos de chefes ou apresentadoras não foram entregues de mão beijada às filhas: o pai quis assegurar que cada herdeira provasse seu valor começando “de baixo”. Patricia deflagrou sua jornada fazendo pequenas peças publicitárias da Jequiti, enquanto as outras, como Silvia e Renata, também começaram na produção de programas e como trainees da empresa até assumirem postos dentro do Grupo Silvio Santos. Hoje, Daniela responde pela programação do SBT, mas é a caçula Renata quem foi escolhida para tocar com autonomia os negócios, sendo a presidente do conselho que rege o conglomerado.
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O maior desafio que as Abravanel vão enfrentar a partir de agora — além da divisão de um patrimônio estimado em mais de 1,6 bilhão de reais, segundo a Forbes — é provar que são capazes de manter a roda mágica criada pelo pai girando. Silvio, como se sabe, descortinou um mundo admirável e altamente lucrativo a partir do zero: foi camelô e locutor de rádio até herdar do colega Manuel de Nóbrega o falido Baú da Felicidade, nos anos 1950. O pulo do gato que fez da empresa de carnês um grande negócio e depois pautou toda sua trajetória na TV foi a decisão de se assumir como um comunicador popular, abraçando o povão e seus anseios sem pudor — e lhe oferecendo pílulas de escapismo em atrações que iam do Show de Calouros ao reality Casa dos Artistas.
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Ocorre que os tempos são outros, e cabe às filhas adaptar essa filosofia vencedora ao público da era das redes sociais. Estratégias não faltam. Nos últimos anos, Daniela, atualmente CEO do SBT, investiu mais de 100 milhões de reais para reformular a grade da emissora, contratou influenciadores para estrear novos programas e agora põe em prática sua ideia mais ambiciosa: o serviço de streaming gratuito +SBT, que agregará em seu catálogo programas antigos da casa e produções inéditas, começando com um carro-chefe providencial: a minissérie documental Silvio Santos Vale Mais do que Dinheiro — projeto que irritou Silvio no começo, mas teve seu aval depois. O desafio de fundo é reconquistar a vice-liderança de ibope, perdida para a Record de Edir Macedo em 2020. “É o que está me deixando mais ansiosa”, declarou a filha número 3 a VEJA, dias antes da morte do pai, no lançamento da plataforma.
O último lance audacioso de Silvio nos negócios foi a criação da Jequiti — que, a despeito da incredulidade até de seus executivos, abocanhou um nicho no mercado de beleza popular. Agora, contudo, a Jequiti converteu-se na primeira prova de fogo das herdeiras. Apesar da expansão, a marca hoje dá prejuízo — e, recentemente, ao insistirem num valor maior que os 450 milhões de reais oferecidos, as herdeiras viram a venda da empresa para a Cimed desandar. O legado da alegria de Silvio é inesgotável — mas, como qualquer negócio, é preciso sagacidade para se manter no trono.
Publicado em VEJA de 23 de agosto de 2024, edição nº 2907