Elena Ferrante estava no ensino médio quando foi impactada por um soneto de uma conterrânea, a poeta italiana Gaspara Stampa (1523-1554). O verso dizia: “Se eu, por ser abjeta e vil / mulher, posso ter um tão alto fogo / por que não posso pelo menos um pouco / retratá-lo para o mundo com inspiração e estilo?”. Então aspirante a escritora, Ferrante se identificou: ela própria se considerava abjeta e vil — e, por ser mulher, indigna de um lugar de respeito na literatura. O raro vislumbre sobre uma aflição pessoal da autora napolitana de identidade desconhecida — que assina sob o famoso pseudônimo — integra seu primeiro livro de não ficção, As Margens e o Ditado, recém-lançado no Brasil pela editora Intrínseca.
A Vida Mentirosa dos Adultos (série da Netflix)
A obra reúne palestras escritas por Elena e encenadas por uma atriz num teatro em Bolonha, em 2021. Nessas amostras de suas ideias fora do registro ficcional, ela destrincha seu processo criativo, bem como suas inseguranças com o ofício. Um detalhe sobressai: presa à longa tradição de mestres masculinos da literatura, Ferrante demorou a encontrar uma voz feminina original para suas protagonistas. Essa voz, ou melhor, essas vozes estavam debaixo de seu nariz: vinham das mulheres a seu redor e dela mesma. Apesar de parecer óbvia, a inspiração quebrava convenções: não se tratava de mocinhas idealizadas ou vilãs caricatas, mas de pessoas com angústias indizíveis, da mãe que negligencia a maternidade em A Filha Perdida à garota que ama e inveja a colega em A Amiga Genial.
Integram também o hall de personagens “abjetas e vis” da autora as explosivas Giovanna e Vittoria, protagonistas de A Vida Mentirosa dos Adultos, livro de 2020 que acaba de ganhar uma adaptação primorosa da Netflix. Vivida pela estreante Giordana Marengo, a adolescente Giovanna um dia escuta do pai um comentário indigesto: ela estaria a cada dia mais parecida com sua tia Vittoria. A garota traduz a frase como “eu sou feia e detestável” — adjetivos que precediam a tia demonizada pela família. Em busca da própria identidade, ela sai da confortável bolha da classe média alta e intelectual de Nápoles e vai ao lado humilde da cidade para conhecer a irmã de seu pai. Interpretada com vigor por Valeria Golino (que fez sucesso ao lado de Tom Cruise em Rain Man, em 1988), Vittoria é uma mulher indomável, ao estilo dos filmes de Pedro Almodóvar. Ninguém diz a ela como viver — quando seu irmão tentou controlá-la no passado, não conseguiu.
A Amiga Genial (Série Napolitana Livro 1)
Fiel ao livro, mas enriquecida pelo recurso da imagem, a série transita por uma Nápoles de diferentes cores e costumes, da beleza da baía com vista para o vulcão Vesúvio à região industrial pobre e afastada dos pontos turísticos. A relação de Vittoria e Giovanna provoca um rastro de destruição que se propaga ao redor de ambas — não por armadilhas maléficas da tia, mas pela hipocrisia da rede de mentiras envolvendo os pais da adolescente.
Em meio ao caos, Giovanna e outros jovens da história fazem a penosa transição para a vida adulta — ou tentam fazê-la. Em As Margens e o Ditado, Elena explica por que essa passagem falha ou frustrada é o diferencial dos seus romances. A ela interessa a subversão do gênero: ninguém em suas tramas vai, de fato, se formar. Na nova minissérie, assim como ocorre em A Amiga Genial, o passar dos anos não serve como atestado de amadurecimento. “Seus pais são umas crianças”, grita Vittoria para Giovanna. A tia então explica que, se a sobrinha quer de fato ser uma adulta, ela precisa encarar verdades ardilosas e aplacar o constante medo de ser quem é. Lição que, saindo da caneta de Elena Ferrante, costuma ter consequências terríveis, mas profundamente libertadoras para suas mulheres — e leitores.
Publicado em VEJA de 11 de janeiro de 2023, edição nº 2823
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