Desde seu brutal assassinato, em 14 de março de 2018, a vereadora Marielle Franco se transformou em símbolo pop da resistência, com seu rosto estampado em camisetas e muros pelo país, além de figurar nas redes sociais de anônimos e famosos que repetem a pergunta: quem mandou matar Marielle? A ativista se tornou, também, um peso pesado na balança que divide a polarização política: enquanto a extrema-direita torce o nariz para a imagem da sorridente vereadora, o outro lado a agarra como patrimônio particular intocável – o que desencadeou a recente controvérsia sobre José Padilha dirigir a série sobre ela na Globoplay, plataforma de streaming da Globo. Dizem os críticos que a escalação do diretor, um homem branco, mancharia a memória de Marielle, uma mulher negra e gay.
Independentemente do lado político pelo qual você, leitor, se inclina – se é que começou a ler este texto – a minissérie Marielle – O Documentário, da Globoplay, merece um espaço na sua agenda.
Conduzida pela central de jornalismo da Globo e dirigida por Caio Cavechini, a produção em seis episódios transita entre três temas: a humanização de Marielle e do motorista Anderson Gomes, também morto no atentado a tiros; as investigações policiais e jornalísticas; e os bastidores políticos do Rio de Janeiro e do Brasil.
A humanização de Marielle e de Anderson toma os dois episódios iniciais e mostra que, antes de ser ativista, a vereadora era mãe, filha, esposa, irmã e amiga. Para retomar estes papéis cotidianos, a produção se vale de gravações antigas com Marielle adolescente em sua festa de 15 anos, com direito a vestido de princesa, e desfilando magérrima em um concurso de miss. O recurso mais forte, porém, é a exibição de áudios e mensagens de WhatsApp ao longo dos capítulos.
“Vem pra casa pra gente te abraçar”, escreveu Marielle à filha, Luyara Santos, quando a jovem, então com 18 anos, teve uma dificuldade. No dia do atentado, enviou diversos áudios melosos à companheira, Mônica Benício, que estava resfriada. O momento mais doloroso vem de uma mensagem da mãe de Marielle, Marinete da Silva, à filha, 45 dias depois de sua morte. “Minha filha, o que fizeram com você?”, pergunta. Em outro momento dramático, um vídeo feito pela esposa de Anderson mostra a alegria do motorista ao descobrir que seria pai – seu filho tinha 1 ano de idade quando ele foi assassinado.
A partir do terceiro episódio, a série engata em ritmo policial, destrinchando detalhes da investigação e como, a cada passo, o mistério da morte de Marielle só se torna mais nebuloso. Questões são levantadas constantemente: por que matá-la? A quem a morte da vereadora, defensora de direitos humanos nas comunidades pobres do Rio, interessava?
As investigações chegam às esferas do poder, com acusações envolvendo o vereador Marcello Siciliano e o ex-conselheiro do Tribunal de Contas do Rio Domingos Brazão. Ambos são ouvidos pelo documentário, assim como outros nomes da direita e da esquerda, especialmente do PSOL, partido de Marielle. O fio da complicada meada desemboca na porta, literalmente, do presidente Jair Bolsonaro, vizinho de um dos suspeitos do crime, Ronnie Lessa, que está preso. A minissérie volta no tempo para mostrar o crescimento e a ação das milícias no Rio de Janeiro, e como elas chegaram ao poder público. É um caminho repleto de pedras e armadilhas, no qual a própria investigação da morte de Marielle e Anderson se debate há dois anos.
Próximo ao fim, o documentário entra neste labirinto e se desestabiliza entre evidências e suspeitos que não levam a lugar algum. Em vez de se valer de recursos típicos do formato, que resumem e facilitam temas espinhosos para os espectadores, a produção se torna uma grande reportagem do Fantástico. O que não é exatamente ruim, mas mostra que a Globo, apesar da coragem de pisar em terreno minado, ainda precisa olhar com mais afinco para fora de si. O balanço final é positivo, e o tema louvável. Especialmente porque o mistério da morte de Marielle não pode ser esquecido: precisa ser resolvido, para o bem da democracia e da Justiça no Brasil.