A história é bem conhecida e comprova o poder mágico de Hollywood em transformar vidas — e surpreender. Em meados da década de 60, então aos 20 e poucos anos, um jovem Harrison Ford se mudou do Meio-Oeste americano para Los Angeles em busca da carreira artística. A aventura teve largada nada palpitante: como primeiro emprego, só conseguiu um contrato genérico de 150 dólares por semana com a Columbia Pictures. A estreia se deu com uma ponta de menos de um minuto no longa O Ladrão Conquistador (1966). No dia seguinte à filmagem, um produtor aconselhou o rapaz a procurar outro ofício — a seus olhos, o novato não exibia talento para ser astro de cinema. O sabichão tinha um faro meio esquisito, para dizer o mínimo, mas foi ouvido: com mulher e dois filhos para criar, Ford chegou a desistir e seguiu a vida como um frugal (embora exímio) carpinteiro. Até ser resgatado por George Lucas em Loucuras de Verão (1973) e quatro anos depois, também pelas mãos do diretor, explodir como o Han Solo de Star Wars (1977).
Ford hoje ri disso tudo, claro, mas conserva algo intacto da experiência difícil do início de carreira: a humildade de um operário incansável das telas. É com essa arma que o ator, aos 80 anos e mais de setenta filmes no currículo, desbrava uma seara curiosamente ainda virgem em sua trajetória: as séries de TV. Enquanto tantos medalhões do cinema correram para protagonizar tramas feitas sob medida para eles na TV e no streaming nos últimos anos, Ford não se sensibilizou com a onda. Só agora entra no jogo, no seu ritmo, e mesmo assim na modesta posição de, por assim dizer, zagueiro.
Na comédia dramática Falando a Real, já disponível na Apple TV+, ele faz um papel de franco coadjuvante. O personagem Paul é um psiquiatra calejado, ranzinza e mentor involuntário do atrapalhado herói Jimmy (Jason Segel) — colega mais jovem que implode em meio ao doloroso processo de luto pela morte da esposa num acidente de carro. No drama de época 1923, que chega à plataforma Paramount+ a partir do domingo 5, Ford compõe ao lado de Helen Mirren o casal central da saga de fazendeiros que lutam por sua terra no interior americano. Respeitável, mas é como se Ford se contentasse com um carro de segunda mão: a nova série é mais uma derivada — a segunda — do sucesso Yellowstone, de Kevin Costner.
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Ainda que assumindo posições discretas, o astro chama atenção, em especial pela capacidade de se desdobrar nos universos tão distantes das duas séries. Profissional ponderado e zeloso dos protocolos da terapia, o psiquiatra Paul é a voz que tenta chamar o personagem de Segel à razão quando, devastado pelo luto, o protagonista de Falando a Real quebra um postulado básico da psiquiatria — o distanciamento dos pacientes. Aos poucos, o tiozão vivido por Ford se solta, e até faz rir. “O que mais me impressionou foi que ele não se prendia à aura de ser Harrison Ford. Queria ser engraçado. Para mim, é um dos maiores comediantes que já vi”, disse Segel em entrevista a VEJA.
Em contrapartida, o drama 1923 coloca o ator na pele do imponente Jacob Dutton, tio-tataravô do personagem de Costner em Yellowstone. Dono de terras disposto a tudo para proteger sua família e seu rancho dos rivais, Dutton faz de Ford um caubói clássico. O ator, aliás, já disse que aceitou o convite para o papel apenas para trabalhar novamente com Helen Mirren, sua parceira em A Costa do Mosquito (1986). Em 1923, os dois ofuscam inevitavelmente até o belíssimo cenário montanhoso. “Eu quero contar histórias que elevem nossas vidas, nos mudem, nos deem experiências que nos tornem mais humanos”, explicou Ford em um vídeo.
Se o psiquiatra Paul e o fazendeiro Dutton guardam algum fiapo de semelhança, é a de serem homens maduros lutando para manter de pé a ordem das coisas em seus domínios. Ou seja: no fundo eles são Harrison Ford sendo Harrison Ford — e difícil achar um artigo mais reconfortante que esse em qualquer tempo. As duas séries são um excelente prelúdio para o grande evento que vem por aí nesse sentido: o retorno do ator à pele do antológico explorador Indiana Jones. O quinto filme da franquia estreia em 30 de junho, após atrasos causados pela pandemia e até um acidente com o astro, que teve de passar por uma cirurgia após fraturar o ombro num ensaio de luta. “Não desejo me reinventar. Eu só quero trabalhar”, disse Ford em entrevista recente, negando qualquer chance de aposentar-se. Que seu desejo seja uma ordem.
Publicado em VEJA de 1º de fevereiro de 2023, edição nº 2826
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