Falando diretamente para a câmera, a jovem Rue interrompe uma cena da série Euphoria e decide se explicar. Viciada em drogas, a adolescente quase morreu numa overdose aos 16 anos, foi internada em uma clínica de reabilitação e, desde que voltou para casa, tem mentido para a família sobre estar sóbria. O espectador sabe de tudo isso. Mas, iludido, ficou feliz quando, perto do fim da primeira temporada, Rue se manteve longe do vício por alguns meses — mas não durou muito. “Como uma personagem amada, por quem muitos torcem, sinto uma responsabilidade de tomar boas decisões. Mas tive uma recaída”, confessa a garota vivida pela mesmerizante Zendaya, olhando para o público. “Sendo justa, disse no início que não tinha a intenção de permanecer sóbria.” Rue lista então as mazelas pelas quais o mundo vem passando, e ironiza como esse cenário leva o público a buscar esperança na TV. Euphoria, ao contrário, nunca se propôs a ser um programa escapista — e sua protagonista segue sem freios em um tortuoso caminho de autodestruição.
Desde que foi lançada pela HBO, em 2019, Euphoria — inspirada numa série israelense de mesmo nome e que acaba de estrear sua segunda temporada — surpreende e provoca numa velocidade e potência atípicas para o filão adolescente. Drogas, depressão, aborto e abuso sexual são temas explorados pelo roteiro com transparência notável e representação visual gráfica impactante — a classificação indicativa da série é para maiores de 18 anos. Não bastassem os tormentos dessa fase da vida, a geração de Rue ainda lida com o vazio de um mundo dominado por celulares e redes sociais, agravante que transforma corpos e relações em produto e moeda de troca, indo do fácil acesso à pornografia até nudes espalhados sem o consentimento dos envolvidos — geralmente, mulheres.
Expoente do gênero chamado de coming of age, que acompanha o rito de passagem da adolescência para a vida adulta, Euphoria extrapola os limites desenhados por essa forma de ficção até aqui. Na série, os traumas da época da escola parecem tão incontornáveis que é difícil imaginar um futuro de paz para seus personagens — além de se temer pelas chances de sobrevivência de alguns deles até lá. São raras as séries de TV que se atrevem a olhar para os atos dos adolescentes quando os pais não estão por perto — não à toa, esses mesmos pais costumam ficar furiosos ou chocados com essas produções. A inglesa Skins, no ar de 2007 a 2013, foi pioneira ao observar de forma explícita estudantes nos últimos anos do colégio em festas regadas a sexo, drogas e rock’n’ roll. Mais dramática, 13 Reasons Why (2017-2020), sobre uma adolescente que se mata, chegou ao ranking dos títulos mais vistos da história da Netflix — e se tornou um dos mais controversos da plataforma ao ser acusado de glamourizar o suicídio. Adentrar o pântano de emoções e deslizes de menores de idade é tarefa inglória da qual Euphoria — que dobrou sua audiência na segunda temporada — dá conta com honestidade.
A série se equilibra na linha tênue entre representar uma realidade sem julgar seus agentes — mas sem, na outra ponta, endossá-la. “Não deveria dizer isso, mas drogas são muito legais — até que deixam de ser”, afirma Rue ao mergulhar nas sensações provocadas pelas substâncias, em cena intercalada com o momento em que sofre a overdose em seu quarto. De forma paralela, outros personagens tão marcantes quanto a protagonista enfrentam seus próprios dramas. Jules (Hunter Schafer, ótima) encara as idiossincrasias de ser uma garota trans. Kat (a brasileira Barbie Ferreira) é filmada ao perder a virgindade e, então, entra para o submundo da pornografia cobrando por encontros virtuais. Enquanto isso, Nate (Jacob Elordi) — por assim dizer, o vilão da série — tenta estar à altura do pai machão, mas que nos bastidores de sua vida perfeita se encontra escondido com mulheres trans.
A reunião caleidoscópica de problemas em um só grupo é exagerada, mas intencional. “A ideia não é ser realista, mas retratar um realismo emocional”, disse o criador da série, Sam Levinson, 37 anos, que experimentou na adolescência a mesma luta de Rue com as drogas. Para fazer esse retrato, Levinson não economiza em cenários, luzes, figurinos e jogos de câmeras que fazem de Euphoria um deleite para os olhos e também uma caixinha de sentimentos sortidos, que vão do pânico ao romance em segundos — uma narrativa que capta a adolescência sem filtros.
Publicado em VEJA de 2 de fevereiro de 2022, edição nº 2774