John Sugar se encaixa no padrão perfeito do galã americano. Bonito, charmoso, inteligente e misterioso, o personagem interpretado pelo irlandês Colin Farrell é um detetive particular especializado em encontrar pessoas desaparecidas. Seu serviço também inclui uma discrição monástica, fazendo dele um favorito dos ricaços, de membros da máfia a megaprodutores de Hollywood — e é desse último substrato que sai o cliente principal da minissérie Sugar, que estreia na sexta-feira 5, na Apple TV+. Quando a neta de um famoso cineasta some, o araponga vip é contratado e dá início a uma peregrinação por Los Angeles — de ambientes glamourosos ao submundo da miséria.
Em determinado momento, Farrell, com seu terno alinhado, em um conversível de luxo, embrenha-se no centro, onde os sem-teto se acumulam em barracas nas calçadas. A cena que expõe o lado pobre da cidade americana não estava no roteiro, mas foi adicionada por insistência do brasileiro Fernando Meirelles, diretor de cinco dos oito episódios. Ao ser convidado para colaborar na produção, o cineasta alugou, desavisado, um apartamento naquela mesma região, onde descobriu uma vasta população em situação de rua. “Deve ter umas 30 000 pessoas ali vivendo em barracas”, disse Meirelles a VEJA (lei a entrevista aqui), chutando o número por baixo: na verdade, em 2023, a população sem teto da cidade foi estimada em 75 000 pessoas.
Essa visão ampla, que conecta o indivíduo ao meio onde vive e, consequentemente, às suas mazelas sociais, é uma das qualidades de Meirelles que chamaram a atenção de Farrell, também produtor de Sugar. “Não consigo ver uma história isolada. Ela está dentro de um contexto que, por sua vez, é carregado de conflitos”, diz o brasileiro. Ator e diretor se conectaram via Zoom quando o paulistano ainda decidia se iria ou não embarcar no projeto. Seletivo, Meirelles, hoje aos 68 anos, já provou as delícias e as amarguras de se aventurar na bilionária e penosa indústria do cinema americano, porta aberta pelo acachapante Cidade de Deus em 2002, sucesso que lhe rendeu uma indicação ao Oscar de direção. Agora, ele estreia na TV americana em uma fase mais desenvolta e segura de sua carreira internacional. Na nova série, o diretor ainda pisa em terreno pouco conhecido: um policial noir com reviravolta assustadora no meio da trama.
Além de Sugar, este ano o diretor ainda vai aparecer nos créditos da série da HBO O Simpatizante, sobre um espião comunista atuando nos Estados Unidos durante a Guerra do Vietnã, com Robert Downey Jr. no elenco. Até 2026, Meirelles já tem três projetos internacionais engatilhados. Por aqui, a agenda também está cheia: em maio, assume a codireção da distopia nacional Corrida dos Bichos para o Prime Video, em parceria com Ernesto Solis e Rodrigo Pesavento. Em breve, lança como produtor a série Cidade de Deus, derivada do filme, para a plataforma Max, com direção de Aly Muritiba (de Cangaço Novo), ainda sem data de estreia. Ao mesmo tempo, desenvolve com a Netflix uma produção sobre a tragédia de Brumadinho, em Minas Gerais, e planeja outra sobre o clã do ex-presidente Fernando Collor de Mello.
Como nem tudo são flores, a trajetória entre o sucesso de 2002 e a abundância de projetos vinte anos depois foi marcada por desafios e tensões. Lá fora, Meirelles descobriu um mercado que limitava sua liberdade criativa com esquemas de trabalho exaustivos que lhe causaram até depressão. Recusou projetos que prometiam fama e dinheiro mas nenhuma autonomia — entre eles, a direção de um filme do 007, com James Bond na juventude, e longas da saga teen Crepúsculo. Para piorar, suas empreitadas internacionais não vingaram como esperado, caso do drama O Jardineiro Fiel (2005), bonitinho mas esquecível, e de Ensaio sobre a Cegueira (2008), um fracasso de crítica e bilheteria. O fiasco de 360, com Anthony Hopkins no elenco, em 2011, levou o diretor a pausar a carreira gringa.
No caminho, recebeu um conselho de Brad Pitt: o galã sugeriu que Meirelles não se importasse tanto com a crítica — recomendação difícil numa profissão em que vaidade é item básico. O brasileiro voltou então seu foco para a produtora O2, em São Paulo, cofundada por ele em 1991 e hoje uma das mais relevantes do setor no país. Só retornou a um set estrangeiro em 2019, com o elegante Dois Papas, da Netflix. Agora, Sugar completa sua reinvenção em projetos realizados no exterior, sem que isso implique desligar a câmera das boas produções nacionais — é mesmo o melhor de dois mundos.
Publicado em VEJA de 29 de março de 2024, edição nº 2886