O decreto de armas divulgado nesta sexta-feira, 21, pelo presidente Lula e pelo ministro Flávio Dino (Justiça e Segurança Pública) representa a maior correção de rumos que o governo poderia dar nessa área. A flexibilização generalizada, desmedida e sem controle instituída pelo governo anterior abriu caminho não só para facilitar o uso de armas e munições como também para prejudicar sua marcação e rastreabilidade, o que ajudaria na investigação de crimes e na prevenção de desvios. Agora, como definiu à coluna a socióloga Melina Risso, diretora executiva do Instituto Igarapé, o novo decreto “restabelece a racionalidade e retoma o controle responsável de armas” no país.
Racionalidade e responsabilidade são as palavras-chave para definir este momento reparador. Em nota conjunta divulgada também nesta sexta-feira, o Instituto Igarapé e o Instituto Sou da Paz – duas organizações que em grande medida ajudaram a montar e sustentar os diques de contenção da política armamentista e alertaram para seus riscos – afirmaram que o decreto “representa mais um passo na retomada de parâmetros responsáveis e de segurança jurídica no controle de armamentos no Brasil”. O novo texto, dizem, representa um “arcabouço legal claro, estável e moderno para uma política responsável”.
Para as organizações, a nova norma é fundamental para a reversão de um quadro assustador: o acervo de armas particulares chegou a quase 3 milhões de unidades, quase o dobro de cinco anos atrás. Um crescimento não acompanhado, na mesma intensidade, do controle salvaguarda que havia antes.
Como mostrou Victoria Bechara na coluna Maquiavel, de VEJA, entre outras medidas o texto reduz o limite de armamentos para caçadores, atiradores e colecionadores (CACs), proíbe o transporte de armas municiadas, diminui a quantidade de munições por arma e por ano, e determina que pistolas 9mm, .40, .45 e armas longas e semiautomáticas voltem a ser de uso restrito das forças de segurança. Com o decreto, o governo federal também passa para a Polícia Federal a responsabilidade sobre os CACs, até então aos cuidados do Exército.
Antes que a grita armamentista mire o atual governo, o Igarapé, o Sou da Paz e a coluna, é preciso deixar muito claro o que o decreto significa e o que o decreto não significa. Neste caso, convém dizer: a medida não confisca as armas adquiridas até aqui, muito menos proíbe sua compra por civis. Não se trata, portanto, de uma medida anti-armas, como muitos defensores armamentistas provavelmente se apressarão em acusar. Trata-se, acima de tudo, de uma regulamentação do acesso de forma mais transparente, coerente e segura. Sobretudo levando em conta a realidade brasileira, de altos índices de violência armada.
O número de homicídios vem caindo no Brasil desde 2017, quando atingiu seu maior nível histórico (mais de 64 mil pessoas assassinadas, com uma taxa de mortalidade chegando a 30,9 por 100 mil habitantes). Na contramão da queda, porém, o número de assassinatos por armas de fogo vem crescendo ano a ano. Não raro, um “cidadão de bem” aperta o gatilho porque perdeu a cabeça.
“O decreto não tira as armas das pessoas, nem as proíbe de ter armas, mas adota o controle responsável de um instrumento que tem gerado muitas mortes e muita violência no Brasil”, define a diretora-executiva do Instituto Sou da Paz, Carolina Ricardo. “Depois de quatro anos muito intensivos de desmonte da política de controle de armas, o atual governo reorganiza a política de acordo com o que previa o Estatuto do Desarmamento. É uma mudança bastante emblemática.”
Vários regulamentos do governo anterior já haviam sido anulados pelo Supremo Tribunal Federal ou revogados em janeiro por um decreto inicial da atual gestão. Mas o fato é que os efeitos dessa política não deixarão o Brasil rapidamente. Em Brasília, por exemplo, a apreensão pelas polícias das pistolas 9mm saiu de 62 em 2018 (quando a arma era restrita) para 325 em 2022, pulando de 3% para 22% das apreensões totais.
Mais: na medida em que passou a haver menos controle desse tipo de arma por civis, passamos quatro anos reduzindo o custo de oportunidade do crime organizado. Não é preciso ir muito além de um caso emblemático. Basta lembrar a prisão, em janeiro de 2022, do atirador esportivo Vitor Rebollal com 54 armas, dentre as quais 25 fuzis de mesmo modelo e calibre. Foi um exemplo evidente de quem estava se beneficiando com a flexibilização. A própria polícia do Rio de Janeiro afirmou que o atirador revendia ao Comando Vermelho o arsenal que obtinha legalmente.
É esse casamento complexo entre o legal e o ilegal que o governo barra agora. Por essa razão especialistas como Carolina Ricardo e Melina Risso definem o decreto como uma “arrumação”, usando definições como responsabilidade e controle no lugar de proibição – o que decididamente o decreto, com sabedoria, não o faz.
Com um elemento importante: sai o Exército, entra novamente a Polícia Federal como a instituição que terá a missão de rastrear e controlar armas e munições. O decreto anunciado nesta sexta-feira sinaliza, mas não detalha essa mudança. É algo que ainda depende de um acordo entre o Ministério da Defesa e o Ministério da Justiça e Segurança Pública.
Carolina Ricardo, do Sou da Paz, destaca que isso exigirá mais apoio e recursos para a Polícia Federal fazer esse trabalho. “Não adianta trocar seis por meia dúzia”, ela ressalta. “Se é verdade que a PF mostrou uma atuação mais diligente no controle de armas do que o Exército, também é verdade que, para dar certo, precisará de mais recursos. Será um grande desafio para a PF e para o governo, e convém oferecer condições para o rastreamento e controle.”
Não há solução para um problema aprofundado ao longo de anos sem esforço, sem investimento e sem desafios de implementação – e o governo parece disposto a isso. Por ora, portanto, é o momento de aplaudir.