“Que há num nome?”, pergunta Julieta a Romeu. Ela mesma responde: “Tivesse a rosa outro nome, exalaria o mesmo doce perfume”. A infeliz menina da peça de Shakespeare está errada. O ministro Gilmar Mendes, tomada a palavra em seu estrito senso, não deveria ter dado o nome de “genocídio” à desastrosa política de saúde do governo Bolsonaro. Se o não tivesse feito, porém, seu desabafo não produziria o mesmo efeito. “Genocídio”, assim como “holocausto”, “fascista” e, em certa medida, “comunista”, é uma palavra bomba atômica. Sua bula adverte que empregá-la requer cuidado extremo. Gilmar Mendes sabe disso, é um intelectual, só a empregaria de modo deliberado. Ao fazê-lo jogou luz ao mesmo tempo sobre (1) a bancarrota do governo no enfrentamento do desafio da pandemia e (2) o embricamento entre governo e Forças Armadas, causa do abusivo emaranhamento das funções institucionais dos militares com os interesses bolsonaristas. São dois itens que só com bomba atômica mesmo.
“Nós não podemos mais tolerar essa situação que se passa com o Ministério da Saúde”, disse o ministro do STF. E ainda: “Isso é ruim, é péssimo para a imagem das Forças Armadas. É preciso dizer isso de maneira muito clara: o Exército está se associando a esse genocídio. Não é razoável! É preciso dizer. É preciso pôr fim a isto!”. Em resposta o ministro da Defesa e os comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica, senhores de sabe-se lá que enormidade de soldados, tanques, navios e aviões, emitiram nota em que se disseram tomados de “indignação”, chamaram a acusação de “irresponsável” e “leviana”, e prometeram ir à Justiça para as “medidas cabíveis” (pelo menos isso: “medidas cabíveis” são preferíveis às “consequências imprevisíveis” de outras notas militares). Acrescentaram que Gilmar Mendes fez comentários “completamente afastados dos fatos”.
Nesse ponto, como diria o jogador de polo Hamilton Mourão, atravessaram a linha da bola. Ora, os fatos estão bem à vista: dois ministros da Saúde demitidos, um general “interino” eternizado no posto e quase trinta outros militares no lugar dos quadros técnicos, enquanto o número de mortos avança para além dos 80 000 e, sob a égide tipicamente bolsonarista da bagunça administrativa e do descaso pela dor alheia, o Brasil consolida-se como vice-campeão mundial da pandemia. Mais uma vez coube a uma voz do Judiciário uma denúncia que numa democracia avançada, com partidos políticos coesos, ideários claros e interesses identificáveis, caberia às forças do Parlamento.
“Tantos militares no governo configuram confusão entre o poder civil e o poder armado”
O peso bruto dos militares no governo vai além do setor da Saúde. Eles estão por toda parte, às vezes até parece que escondidos. Na semana passada a demissão, no Inpe, da pesquisadora Lubia Vinhas do cargo de coordenadora do setor que mede o desmatamento na Amazônia fez-nos saber que também esse órgão é dirigido por um militar, também ele um arrastado “interino”. Onde não estão, os militares emprestam a mão amiga à vanguarda da anarquia bolsonarista. O general Ramos, do time do Planalto, emitiu nota em defesa do “competente e dedicado” ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles — aquele da boiada —, vítima, segundo ele, de “sórdida campanha”. Há militares da ativa e da reserva no governo. Em teoria, os da reserva estão liberados para participar do governo, enquanto os da ativa, com um pé numa instituição de Estado, e outro em função política, enfrentariam situação constrangedora.
Para o comum dos mortais, no entanto, general é general, seja da ativa ou da reserva, coronel é coronel, e a soma de uns e outros configura uma portentosa confusão entre o poder civil e o poder armado. As palavras de Gilmar Mendes, por mais que exageradas na retórica, representaram um alerta contra uma situação de muito proveito para Bolsonaro, cujos desvarios contam com a rede de segurança dos militares, e de desastre para o bom funcionamento e o prestígio das Forças Armadas. Se bem a interpretassem, os chefes militares concluiriam que o ministro do STF pôs-se ao seu socorro. As Forças Armadas argumentam que não apoiam o governo nem se veem por ele representadas. Mas, como escreveu o colunista Ricardo Noblat, “a continuarem a tomar as dores de um governo que não apoiam nem representam, reforçarão as suspeitas de que o apoiam, sim, de que com ele se identificam, e de que essa história de ‘instituições do Estado’, como está na Constituição, não passa de letra morta”.
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Publicado em VEJA de 22 de julho de 2020, edição nº 2696