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Roberto Pompeu de Toledo

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O rei fujão

As tentações da ganância e da luxúria desviaram Juan Carlos, da Espanha, do script

Por Roberto Pompeu de Toledo Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 15h42 - Publicado em 14 ago 2020, 06h00
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  • Ninguém mais acredita que as monarquias existam por direito divino. Como explicá-las, porém, sem recorrer a alguma coisa de divino, ou de sobrenatural, ou mítico, ou mágico? Veja-se o caso de Juan Carlos, o “rei emérito” da Espanha, título que ostenta desde a abdicação em favor do filho, o rei Felipe VI. Acossado por acusações de corrupção, Juan Carlos foi forçado a deixar o país. Um presidente que se refugia no exterior, um primeiro-ministro, governador — até aí, vamos. Mas um rei, ainda que não mais no exercício do cargo, e sem que uma revolução o tenha deposto, eis um fato que choca. Reis não são pessoas comuns, segundo crença que subsiste mesmo em mentes treinadas por dois séculos e meio de Iluminismo.

    Mal foi anunciada sua saída, depois de negociações com o filho, e o rei emérito tomou rumo desconhecido. Humilhação das humilhações, igualou-se nesse passo a um vulgar Queiroz, e a pergunta “Onde está Juan Carlos?” passou a ecoar a que perseguia o auxiliar da família Bolsonaro. Segundo reportagem do jornal El País, o Palácio Real, ao comunicar o ocorrido, cuidou de selecionar o verbo que o fizesse do modo mais conveniente. “Mudar” foi o escolhido. O rei decidiu “mudar para fora da Espanha”, anunciou-se. Desprezaram-se as alternativas “sair”, “abandonar”, “deixar” ou “viajar”. Fora de questão estavam “exilar-se” e “fugir”.

    Viradas bruscas marcam a trajetória de Juan Carlos. Arrancado aos 10 anos do pai, o príncipe dom Juan, que no exílio reclamava o trono, foi educado à sombra do ditador Francisco Franco, cujo objetivo era torná-­lo seu sucessor. Depois da morte de Franco, porém, revelou-se um estrito cumpridor do pacto que levou o país à democracia. E mais ainda fortaleceu sua posição, como eixo e símbolo da monarquia constitucional, quando da tentativa de golpe em fevereiro de 1981. Enquanto o tenente-coronel Tejero Molina, no Parlamento, mantinha os deputados na mira das armas, e outros militares ensaiavam movimentos de tropas, Juan Carlos enviou ao general Milans del Bosch, o golpista de mais alta patente, telegrama em que dizia: “Qualquer golpe de Estado não poderá se respaldar no rei, que é contra o golpe. (…) Ordeno que retire todas as unidades que tenha deslocado. Ordeno que diga a Tejero que desista imediatamente de sua atitude”.

    “As tentações da ganância e da luxúria desviaram Juan Carlos do script”

    Naquele momento, o de sua maior glória, Juan Carlos incluiu uma frase que hoje soa como ironia do destino: “Juro que não abdicarei da Coroa nem abandonarei a Espanha”. Nestes últimos anos, primeiro ele abdicou da Coroa, e agora deixou a Espanha. A desgraça começou em 2012, quando, durante uma discreta viagem a Botsuana, quebrou o quadril. A necessidade de socorro trouxe a aventura à luz do dia e, com ela, os constrangedores detalhes de que a ideia era caçar elefantes, a 50 000 dólares o animal, e que em sua companhia, além de ricos sauditas, encontrava-se uma amante, a alemã Corinna Larsen. O consequente desprestígio levou-o em 2014 à abdicação. Em 2018 começaram a surgir notícias, reforçadas em março último, de fundos de 100 milhões de dólares depositados na Suíça em seu favor, por sauditas interessados em negócios na Espanha. Seguiu-se a decisão de deixar o país, tomada, como a da abdicação, para dar sossego ao filho reinante e salvar a instituição da monarquia.

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    Monarcas antigos, no Egito e na Grécia, confundiam-se com a divindade. Na Idade Média atribuía-se aos reis o poder de curar com o toque das mãos. A origem divina, os poderes divinos, e mesmo o mais modesto “direito divino”, estão peremptos. Mas continua-se a acreditar no absurdo, ou seja: que uma família tem, sobre todas as outras, o privilégio de aboletar-se num trono e nele permanecer de geração em geração. Ou melhor: finge-se acreditar. Monta-se um teatro e exige-se que o ator no centro do palco, em troca do protagonismo, contente-se com poderes limitados, siga um minucioso manual de etiqueta, mantenha conduta ilibada e renuncie a expansões pessoais.

    O papel é de símbolo, como o de certas divindades e dos seres mitológicos. Há um jogo, portanto, que se apoia nos antigos laços com o sobrenatural e com a lenda. Ocorre, no entanto, para às vezes estragar tudo, que os atores são humanos. Na Inglaterra houve o caso do rei que para ficar com a plebeia por quem se apaixonou teve de largar o trono. A instituição monárquica balançou. Na Espanha as tentações da ganância e da luxúria desviaram do script o antes tão providencial Juan Carlos. A monarquia, que nunca foi consenso, voltou a entrar em questão.

    Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

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    Publicado em VEJA de 19 de agosto de 2020, edição nº 2700

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