O general Sylvio Frota, ministro do Exército, achava que o presidente Ernesto Geisel, sob o qual servia, era de esquerda. A ditadura já havia vencido o desafio da luta armada, tinha no Ato 5 instrumento para deixar a oposição parlamentar de joelhos, mas Frota identificava o perigo esquerdista-comunista até dentro do aparelho estatal. Num famoso rompante, ele propagou uma lista de 96 comunistas a ocupar cargos públicos. No entanto, escreve Frota em seu livro de memórias, “o general Ernesto Geisel nenhuma providência tomou, o que não constituiu surpresa para mim, que sabia de seus pendores esquerdistas”. Em julho de 1977, numa tensa audiência, em que Frota reclamava de o governo não reprimir como devia manifestações de estudantes, ele julgou ter ouvido de Geisel a seguinte afirmação: “E… tu sabes perfeitamente que eu não sou infenso às esquerdas”. O general comenta, no mesmo livro (Ideais Traídos, publicado em 2006, depois de sua morte, em 1996): “Uma Revolução que tem entre suas principais finalidades a de combater o marxismo, que é, portanto, por sua natureza, infensa ao socialismo, encontra, por infelicidade dos revolucionários, na rota de suas realizações, um presidente (…) que não é infenso às esquerdas”.
Frota, que defendia a dureza e a repressão, e Geisel, que se empenhava no que era chamado de “abertura” do regime, protagonizaram um dos confrontos mais agudos do período militar. A lembrança do episódio vem a propósito da manifestação golpista marcada para este domingo, dia 15. O general do “f*d@-se”, Augusto Heleno, a primeira voz a levantar-se em favor do “povo na rua” para enfrentar as instituições, viveu de perto o confronto de quatro décadas atrás; então jovem oficial, serviu como ajudante de ordens de Frota. De duas uma: ou não assimilou as lições que dali poderia ter extraído ou tem o coração ainda encharcado de “frotismo”. Ou então uma só: de tão encharcado ainda de frotismo, faz questão de ignorar a lição.
“A ditadura fez mal ao Exército, ao despertar em seu seio ambições políticas e cizânias”
Feito ministro do Exército em maio de 1974, só dois meses após o início do governo Geisel, o general Frota viu-se dominado, três anos depois, por um vírus fácil, naquele tempo, de infectar os ocupantes do cargo: achar que era candidato natural à Presidência da República. Foi o que ocorreu na primeira sucessão do regime, quando o ministro Costa e Silva encurralou e dobrou o presidente Castello Branco. Frota jamais disse que era candidato, mas agia como se fosse: cultivava os generais, os principais cabos eleitorais do período, e os políticos. Até uma bancada “frotista” floresceu no Congresso. E ainda contava com a fidelidade da turma dos porões, da tortura e dos assassinatos, da qual, diga-se de passagem — mas não à toa —, provêm, em reta linhagem, os capitães Jair Bolsonaro de hoje em dia.
Em 12 de outubro de 1977, deu-se o desfecho. Geisel cobriu-se dos necessários apoios e, numa audiência de não mais de cinco minutos, demitiu o ministro do Exército. “Cumprimentei-o sem proferir palavra sequer, dei-lhe as costas e retirei-me”, escreve Frota. Retirou-se, mas não se entregou. Voltou a seu gabinete e convocou os generais integrantes do Alto-Comando para uma reunião em Brasília. Geisel, prevenido, contra-atacou também os convocando. Ao desembarcarem no Aeroporto de Brasília, os comandantes tinham dois carros oficiais à disposição: um, enviado pelo Ministério do Exército, os levaria à reunião de Frota; o outro, enviado pelo Palácio do Planalto, os levaria a Geisel. Preferiram o segundo. A “linha dura” perdeu.
A vitória de Geisel garantiu a sobrevivência do projeto de abertura e facilitou o processo de redemocratização, mas não foi só: fez também valer no Exército os valores da disciplina e da hierarquia. É nesse ponto crucial que se estranha o aventureirismo do general do f*d@-se. A ditadura fez mal ao Exército, ao despertar em seu seio ambições políticas e cizânias. O general do f*d@-se, em seus anos de formação, viu de perto a fratura que vitimava a instituição. Tivesse Frota vencido a parada e humilhado o presidente, sabe-se lá a que profundezas de desacordo, de rancor e de ódio seria arrastado o Exército. Na Venezuela, de chamamento em chamamento às ruas, fez-se uma ditadura, e da ditadura produziu-se um Exército com oficiais empoleirados nos postos mais rendosos da administração e emporcalhados na corrupção. Muitos dos que tomarão as ruas neste domingo não sabem o que fazem. O general do f*d@-se e os demais generais capturados no balaio do bolsonarismo deveriam saber.
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Publicado em VEJA de 18 de março de 2020, edição nº 2678