Desigualdade virou palavrão desde a chegada ao Palácio do Planalto do atual ocupante. Jair Bolsonaro não deve tê-lo pronunciado nenhuma vez na vida e, ao escutá-lo, deve achar repugnante como “golden shower”, de cujo significado se inteirou num passado Carnaval. Entre a prole o sentimento é igual, ou maior. Fale-se em desigualdade ao Carluxo e ele considerará o interlocutor mais comunista do que o João Doria. Eduardo postará nas redes que desigualdade é o outro nome do “vírus chinês”. E Flávio, o primogênito? Atribui-se a Goebbels, ultimamente tão popular no Brasil, a frase: “Fale-se em cultura, e eu puxo meu revólver”. Flávio diria: “Fale-se em desigualdade, e eu chamo o Queiroz e o Adriano”. No entanto, veio a pandemia do coronavírus e…
O mercado financeiro gosta da imagem cunhada por Warren Buffett para as horas de imprevisibilidade. “Quando a maré baixa, fica-se sabendo quem está nadando nu”, disse o megainvestidor. Pois veio a pandemia da Covid-19 e o Brasil exibiu-se peladinho, com suas hordas de catadores de lixo, acrobatas de cruzamento, flanelinhas, moradores de rua, vendedores de pano de chão, vendedores de bala, camelôs, boias-frias, mendigos. Sem falar nas diaristas, entregadores de pizza, motoristas de Uber, nas manicures, pescadores, ajudantes de pedreiro, garis. E sem se esquecer das domésticas sem registro, dos garçons sem salário, dos beneficiários do Bolsa Família, dos manobristas (ou manobreiros, conforme a região do país), das professoras do sertão que ganham meio salário mínimo, dos tocadores de biroscas nas favelas. Não bastasse o pesadelo da pandemia, nasceu para o Brasil um pesadelo dentro do pesadelo: e quando, e se, o vírus espalhar-se pelas comunidades pobres, imensas, superpovoadas, apertadas e mal servidas de serviços públicos?
“É bom que o governo tenha dado números e peso ao Brasil dos desassistidos”
É uma trapaça do destino que, por cortesia do coronavírus, esse Brasil, com a força de um monstro que se desenterra da caverna, onde sobrevivia invisível, tenha batido de cara bem com esse governo. Entre a coleção de infâmias saídas da boca presidencial na presente crise, em continuação às infâmias ditas antes, uma das mais cruéis foi: “O brasileiro tem de ser estudado, não pega nada, o cara fica pulando no rio ali junto com o esgoto e o cara não pega nada”. Travestida de elogio ao brasileiro, a fala se traduz num antológico elogio da falta de saneamento básico. No entanto, com toda a sua alienada insensibilidade, o governo Bolsonaro, empurrado pelo Congresso, teve de reconhecer que será preciso prestar um auxílio emergencial a um contingente de brasileiros que, segundo projeções, poderia chegar a 100 milhões. 100 milhões!
É uma segunda trapaça do destino, uma piada em tempos de tragédia, que esse encargo hercúleo tenha caído no colo de uma equipe econômica guiada pela elegante ideologia do Estado mínimo. E é uma terceira prova de como o destino pode ser brincalhão que o Brasil dos 100 milhões, ao ser dimensionado e catalogado, receba o reconhecimento oficial justamente de um governo ao qual repugna falar em desigualdade. Entra verão e sai verão, o Brasil dos pobres e miseráveis aparece nos noticiários da TV. É constituído daqueles que, nas enchentes, têm suas moradias arrasadas. “Perdi tudo” é a frase que mais se ouve, dita entre restos de sofá e imprestáveis geladeiras. Boa parte dos brasileiros que não integram os 100 milhões acompanha a cena anestesiada.
É bom que, sob a pressão das circunstâncias, o governo tenha dado números e peso ao Brasil dos desassistidos, esse Brasil que tem ares de pedaço piorado da Índia, porque sem saber inglês e sem as expectativas do desenvolvimento acelerado, ou de extensão um pouco melhor da África, porque sem (por enquanto) o ebola e a aids epidêmica. Melhor será se o auxílio deixar de ser emergencial e, passada a epidemia, tornar-se um colchão permanente de renda mínima (não é que o Suplicy tinha razão?). E ainda melhor se for acompanhado de maior carga de impostos sobre os ricos e seriedade na gestão dessa maior das alavancas de promoção social que é a educação, hoje entregue a um bobo insano. O cientista político Fernando Schüler defendeu a “renda básica universal” num recente artigo na Folha de S. Paulo. Atenção, Jair, Flávio, Carluxo e Eduardo: Schüler não é comunista. É um liberal, crítico da esquerda. Schüler escreveu que a eliminação da miséria é “o desafio ético do nosso tempo”, e concluiu: “É esta a nossa fronteira civilizatória, assim como foi, no século XIX, o fim da escravidão”.
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Publicado em VEJA de 15 de abril de 2020, edição nº 2682