Os muitos mistérios do caso Marielle Franco
Quase seis anos após do crime, parece que se vai saber quem foi o mandante, afinal. Mas há muitas outras dúvidas que precisam ser esclarecidas.
A delação premiada do assassino de Marielle Franco, Ronnie Lessa, está sendo homologada pelo STJ.
Seis anos depois, a investigação sobre o caso parece enfim perto de ser solucionado. Trata-se um caso rodeado de aspectos até agora incompreensíveis. Vale recapitular.
- Assim que ocorre o crime, o bolsonarismo inicia uma violenta campanha para estabelecer uma falsa ligação entre ela e traficantes e assassinar a reputação de Marielle.
- Logo no início da investigação, é plantada uma falsa testemunha para incriminar duas pessoas que nada tinham a ver com o crime. A testemunha tem ligação com Domingos Brazão, conselheiro do Tribunal de Contas do Estado do Rio.
- Descoberta a farsa, a investigação volta aos trilhos. O miliciano Adriano Magalhães da Nóbrega torna-se o principal suspeito.
- Ronnie Lessa e Élcio de Queiroz são presos, e nome de Adriano é descartado.
- O governador Claudio Castro substitui, sem motivo aparente, o delegado responsável pela investigação (no total, Castro faria quatro substituições, chegando a cinco delegados).
- Descobre-se que Lessa morava no mesmo condomínio de Bolsonaro. A Polícia Federal entra no caso.
- O porteiro do condomínio diz que Élcio, motorista no dia do crime, apareceu na porta e disse que ia visitar Bolsonaro (que não estava no Rio no dia). Carlos Bolsonaro, que também mora no condomínio, se apodera o vídeo com a imagem de Élcio.
- Bolsonaro e a PF ameaçam o porteiro com 20 anos de cadeia. O porteiro se retrata e nunca mais dá as caras. Outro porteiro nega a visita. O depoimento do primeiro porteiro é descartado pelos investigadores.
- Por pressão de Bolsonaro, Moro substitui o diretor da Polícia Federal, e o delegado da PF no caso, Leandro Almada, é transferido para a Bahia.
- Jair Bolsonaro manda a Polícia Federal (num claro abuso de autoridade) tomar o depoimento de Ronnie Lessa no presídio Ninguém, além do entáo presidente, teve acesso ao depoimento até hoje.
- Na fatídica reunião de 22 de abril de 2020, Bolsonaro afirma que se não trocar o superintendente do Rio, “troca o diretor, troca o ministro”. Moro cai e Bolsonaro troca o diretor, que troca o superintendente do Rio mais uma vez.
- As procuradoras do MP-RJ, Simone Sibilio e Letícia Emile, abandonam o caso alegando “interferência externa”.
- O ex-governador do Rio, Wilson Witzel, afirma que Bolsonaro rompeu com ele por causa da prisão de Lessa e Queiroz. E que o então presidente fez um acordo com o vice, Claudio Castro, para que este atrapalhasse as investigações em troca da ajuda de Bolsonaro no impeachment de Witzel (que de fato ocorreria pouco depois).
- Fica tudo meio que parado até que Lula assume, a Polícia Federal retoma a investigação e traz de volta o delegado Leandro Almada, agora como superintendente da PF no Rio. Claudio Castro tenta, sem êxito, impedir a nomeação.
- Em três meses, Almada obtém ua confissão de Élcio, que menciona Domingos Brazão.
- Seis meses mais tarde, Lessa faz uma delação premiada. O fato de a delação estar sendo examinada pelo STF significa que há gente com foro privilegiado citada. Domingos Brazão é o único investigado que tem foro privilegiado,
Vale aprofundar quem são algumas das personagens citadas acima.
Marielle Franco. Negra, mulher, bissexual, ex-moradora de favela, Marielle se tornou um símbolo de superação e esperança em um país altamente preconceituoso e com profunda injustiça social. Antes de ser eleita, foi auxiliar do então deputado estadual Marcelo Freixo, relator da CPI que investigou as milícias e denunciou mais de 200 criminosos. Depois de eleita, seguiu combatendo milícias, e, por isso mesmo, seu assassinato foi imediatamente atribuído às milícias.
Família Bolsonaro. A família sempre defendeu as milícias e tinha uma ligação direta com o miliciano Adriano Magalhães da Nobrega: Flavio concedeu-lhe a Medalha Tiradentes (quando estava preso por assassinato) e empregou no gabinete sua mulher e sua mãe. Quando deputado federal, Jair o defendeu da tribuna da Câmara Federal.
Adriano Magalhães da Nóbrega, ex-capitão do Batalhão de Operações Especiais, da PM/RJ, era dono do Escritório do Crime, uma quadrilha de matadores de aluguel. Nos três assassinatos de que foi acusado, as testemunhas mudaram seus testemunhos ou sumiram. Em um dos assassinatos, foi réu junto com Fabrício Queiroz, amigo íntimo da família Bolsonaro há quadro décadas. Adriano morreu em um confronto com a polícia baiana, em circunstâncias que sugerem queima de arquivo, hipótese defendia por sua irmã e pela atual mulher.
Domingos Brazão é ex-deputado estadual e, como conselheiro do TCE chegou a ser afastado e preso (junto com todos os outros conselheiros) por corrupção. Acusado de chefe de milícia e de assassinatos, Brazão é figura conhecida na crônica policial carioca. Seu irmão Pedro é atualmente deputado estadual. Outro irmão, Chiquinho, se elegeu deputado federal em 2022 e atualmente é secretário de Ação Comunitária do prefeito da capital, Eduardo Paes.
A identidade do assassino de Marielle é apenas o primeiro mistério no caso. Há muitos, mas muitos, outros.
(Por Ricardo Rangel em 24/01/2024)