Semana a semana, o cerco se fecha sobre o ex-presidente Jair Bolsonaro: inelegível, investigado por diversos crimes, já indiciado por alguns, o esperado é que fique preso por muitos anos, tornando-se carta fora do baralho. Mas, ainda que isso de fato aconteça (no Brasil, nunca se sabe), não significa que o efeito deletério de suas posturas vá desaparecer. Bolsonaro ensinou que a intolerância com quem é diferente é aceitável, acirrou ódios e intensificou a desunião, visível no aumento de ações contra minorias, no rompimento de amizades e na fragmentação das famílias, com casos frequentes em que parentes próximos não se falam há anos (há uma amarga ironia aqui, já que Bolsonaro professa valorizar a família). São feridas que demorarão a cicatrizar, se é que um dia cicatrizarão.
Diante do cenário de ódio, ele deu a grande número de brasileiros o acesso a armas perigosas e politizou as Forças Armadas, ressuscitando o risco da intervenção militar, que permanecerá vivo não se sabe até quando. Propagou o negacionismo científico, que permitiu que a pandemia matasse muito mais do que deveria. O efeito desagregador dessas mortes — pais sem filhos, filhos sem pais, famílias aos pedaços — permanece, assim como o calvário dos que até hoje lidam com as sequelas da covid-19.
Há décadas ninguém questionava vacina, mas, por causa de Bolsonaro, nunca os índices de imunização estiveram tão baixos e doenças consideradas erradicadas ameaçam voltar. Muitos médicos (!) preferem fake news à ciência, prescrevendo remédios inúteis ou perigosos. A politização do Conselho Federal de Medicina, que aderiu ao kit cloroquina e ultimamente tentou impedir a prática do aborto legal, é assombrosa.
Bolsonaro perdeu em 2022, mas ajudou a eleger o pior Congresso que já tivemos no Brasil; pode não participar em 2026, mas sua imagem contribuirá para a reeleição. Há assuntos complexos — meio ambiente, revolução tecnológica, mudanças no trabalho, redes sociais — por tratar, e para isso precisamos de compreensão, inteligência e sensatez. Os parlamentares do grupo de Bolsonaro, porém, oferecem o oposto disso, tomando uma decisão retrógrada atrás da outra.
“Ele perdeu em 2022, mas ajudou a eleger o pior Congresso que já tivemos no Brasil”
É possível que o ato mais danoso de Bolsonaro tenha sido a rendição total do Executivo ao Legislativo no que se refere ao Orçamento. No “presidencialismo de coalizão” — variação petista do presidencialismo de cooptação —, o Executivo dava ao Legislativo cargos, verbas e propinas em troca de apoio para governar. Bolsonaro inovou e entregou, via emendas parlamentares, o controle do caixa diretamente ao Congresso.
No novo modelo (em que a corrupção permanece), os parlamentares já têm o dinheiro de que necessitam — para obras, campanha eleitoral ou bolso — sem precisar dar nada em troca. A capacidade do Executivo de aprovar qualquer coisa caiu vertiginosamente, comprometendo a governabilidade. É uma circunstância perigosíssima e muito difícil de reverter.
Esses são apenas alguns poucos itens do legado de Bolsonaro, que ainda vai demorar para ser completamente quantificado.
Mas já dá para ver que ele é a verdadeira herança maldita.
Publicado em VEJA de 19 de julho de 2024, edição nº 2902