Conheci Roberto Civita pessoalmente em 2005, num jantar na casa do cientista político Luiz Felipe d’Avila, um amigo comum. A VEJA.com só passaria a hospedar o meu blog no ano seguinte, mas não por iniciativa dele. O convite partiu da direção da revista. Roberto, constatei, fazia jus à fama: era inteligente, tinha um raciocínio diabolicamente rápido, antenado com tudo o que acontecia no país e no mundo. Estava, afinal, diante do criador e do editor da mais importante revista do país — e de dezenas de outras publicações que fazem a história do jornalismo brasileiro — e de uma das maiores do mundo. Estava diante também de um grande empresário, bem-sucedido, independente. Mas me surpreenderam — não que esperasse o contrário; ocorre que eu não o conhecia pessoalmente — a generosidade da conversa, o bom humor, a genuína atenção que dispensava à fala do interlocutor e a indignação serena com as questões públicas que não eram de seu agrado. E, sim, como qualquer um de nós, tinha as suas utopias.
E esse era um dos aspectos mais encantadores, acho eu, de sua personalidade, como vim a constatar nas outras, sei lá, nove ou dez vezes em que conversamos pessoalmente. “Roberto”, como gostava de ser chamado — sem qualquer outro acréscimo —, era, reitero, uma das pessoas mais bem informadas que conheci, mas conservava em relação a tudo uma humilde curiosidade. Ignorasse o interlocutor ser ele o homem que deu forma a um dos maiores empreendimentos editoriais do país e o timoneiro de um grande grupo empresarial, cometeria o erro de considerá-lo um ingênuo. E só por isto seu conhecimento era tão vasto: cultivava a dúvida sistemática, cartesiana, dos sábios, não o excesso de certeza dos estúpidos. Ela iluminava e fortalecia as suas convicções.
Trazia sempre num dos bolsos do paletó uma pequena agenda — não parava de trabalhar. Da conversa com o interlocutor, surgiam pautas, que ele anotava e passava adiante. Se viravam ou não reportagens, aí era com os fatos. Também podia ocorrer de alguém citar um livro que ele não conhecesse e pelo qual se interessasse. Anotava o nome. Em dezembro de 2011, encontramo-nos na praia para um almoço. Luiz Felipe, presente, lembrou um texto, que agora me foge, e Roberto meteu a mão no bolso da bermuda. Tirou a agendinha e anotou. Naquela noite de 2005, passamos boa parte do tempo conversando sobre… religião! Citei, então, uma passagem de “As Formas Elementares da Vida Religiosa”, de Durkheim. Ele parou por um tempo e empregou um adjetivo que usava com certa frequência: “Fascinante!”. E acionou a sua agenda. Era generoso no elogio, objetivo na crítica e de uma sinceridade às vezes desconcertante, mas jamais grosseiro, atrabiliário ou ríspido.
No dia 24 do mês que vem, este blog completa seu sétimo ano hospedado na VEJA.com. Nesse tempo, não tive de consultar outra instância que não a minha própria consciência — e é fato que expressei aqui, e na própria revista, opiniões com as quais sei que Roberto não concordava — sou certamente mais conservador do que ele era — e que também não coincidem com a linha editorial da própria VEJA. Jamais me chegou nem mesmo um eco, ainda que distante, que tivesse o ânimo da censura ou da imposição de, sei lá como chamar, uma “linha justa”. Essas coisas eram estranhas a seu vocabulário, a seu universo intelectual, a seu entendimento do mundo.
Os perigos da ditadura e os da democracia
Roberto era um homem notavelmente corajoso. Sabia, como todos sabemos, que os riscos existem, mas não acreditava no medo. Assim a VEJA, criada no “annus horribilis” de 1968, enfrentou tanto os perigos da ditadura como, atenção para isto!, os da democracia — porque estes também existem e não são pequenos.
Nas ditaduras, sabemos, os que se prezam são, muitas vezes, submetidos a uma espécie de servidão involuntária. Nas democracias, o perigo maior é o da servidão voluntária. A imprensa corre o risco imenso de, sob o pretexto de “colaborar com o país”, passar a se confundir com o próprio poder, do qual tem a obrigação de ser uma analista crítica, independente, imparcial no que concerne às forças políticas em disputa, mas apegada, sim, a valores. Roberto tinha essa clareza.
Na sexta, comentando a cobertura que amplos setores da imprensa dispensaram, nos anos recentes, à política de segurança pública do Rio, escrevi sobre o papel do jornalismo o que segue em azul. Enquanto escrevia, pensava em Roberto. Retomo depois:
[segundo a visão colaborativa, engajada] o papel da imprensa seria o de linha auxiliar do estado. Em vez da crítica, considerada constrangedora, por que não a abordagem senão elogiosa, mas afirmativa ao menos? Afinal, se todos queremos o bem do Rio, do país, da humanidade, há de haver entre nós o lugar do consenso. Muita gente, de boa-fé, sem qualquer ânimo para a censura, reprova o papel da imprensa, que sempre estaria interessada na má notícia, nos aspectos negativos da realidade, porque, dizia-se antigamente, quando esta era uma questão pertinente, “vende mais jornal”. A ilação embutia um pressuposto: o de que o leitor tinha um lado masoquista — eventualmente sádico no caso de que a má notícia não lhe dissesse respeito. Participei, há muitos anos, de uma tertúlia profissional, equivocada desde a convocação, para que se debatesse esse assunto. E se chegou, então, a uma formulação editorial que vinha até com uma chancela gráfica: “Boa Notícia”. Vale dizer: incorporava-se como verdade a crítica infundada de que a “má notícia” era o nosso filão principal e de que seria preciso treinar o olhar para importunar menos o leitorado, eventualmente as “otoridades”, com assuntos desagradáveis. É claro que foi um tiro n’água. Os meios estavam errados, e os meios sempre qualificam os fins.
Um jornalismo que vivesse, ainda que com bons propósitos, da mera justificação do presente não tardaria a incorporar, ele mesmo, a lógica do poder. Em vez de exercitar um conjunto de valores, passaria a ser o administrador de um conjunto de estratégias para, então, preservar O poder e se conservar NO poder. Não tardaria a considerar que todos os males do mundo — ou, vá lá, do país — decorreriam do dissenso; da ação deletéria de pessoas ou grupos que, em vez de colaborar com o bem comum oficialmente definido, dedicam-se à sabotagem. Não é uma tentação que esteja apenas na cabeça dos estúpidos e dos venais. Um homem inteligente e inegavelmente talentoso como Máximo Gorki justificou e aplaudiu todos os crimes de Stálin. Escreveu um livro exaltando, por exemplo, a construção de Belamor, o canal entre os mares Báltico e Branco. Foi feito com a mão de obra escrava dos prisioneiros. Nada menos de 170 mil pessoas! Vinte e cinco mil morreram em um ano e meio… Gorki acreditava sinceramente no socialismo… A honestidade da convicção não faz a boa obra. Se o jornalismo abre mão da crítica, contribui para a esclerose do poder. O consenso é, nas democracias, o que a censura é nas ditaduras.
Retomo
Almocei com Roberto, pela última vez, há uns sete, oito meses. Ele me chamou justamente para conversar sobre liberdade de imprensa, obrigatoriedade de diploma de jornalista, regulamentação da mídia, essas coisas. E eu então lhe disse a frase que encerra o parágrafo anterior. Anotou. “É muito boa, mas a censura é imposta, o consenso pode ser construído livremente”. Aí conversamos por umas duas horas sobre supostas verdades, que vão se estabelecendo como imperativos pela simples e óbvia razão de que falta coragem para afrontá-los. Assim, também os consensos podem ser impostos pelo espírito do tempo. “Fascinante!”
Roberto viveu uma vida intensa e se pereniza na obra que deixa, que continuará a render frutos. No post que traz uma série de vídeos, ele conta como enfrentou a truculência de um estafeta do poder, que achou que poderia silenciar a VEJA. E ele, então, resume: “Você não pode aceitar a chantagem. Você não pode aceitar a pressão, a ameaça. Você tem de continuar fazendo o que você tem de fazer. E é só isto: fazendo uma grande revista”.
Roberto não morre enquanto viver a sua obra. Que seja imortal!