Ai, ai… Assim eu começo os posts quando me bate, assim, aquele misto de indignação e tédio diante da reiteração do absurdo. A Folha publica nesta terça um artigo assinado a quatro mãos, nesta ordem: Márcio Thomaz Bastos e José Eduardo Cardozo. Nem sempre o que vem depois é menos importante. No caso em espécie, é. Vamos ver. Bastos é ex-ministro da Justiça; Cardozo é o atual. Mas Bastos é também advogado de um dos protagonistas do escândalo do mensalão, comandado por um figurão do partido a que ambos pertencem, o PT. Cardozo deveria ser mais decoroso. Se o seu parceiro de artigo é, inegavelmente, um medalhão da advocacia criminal, também é, insisto, defensor de um dos protagonistas de um crime cometido contra a ordem democrática e contra o estado de direito. Est modus in rebus, senhor Cardozo.
O artigo é aparentemente anódino; há quem possa chamá-lo até de inócuo. Mas não para quem tem memória. E eu tenho. Até porque o assunto de que tratam começou a ser debatido em 1993. Nessa época, eu era editor-adjunto de política da Folha e acompanhava de perto os desdobramentos do tema para incluí-lo ou não na pauta. “Doutor Márcio”, o reverenciado, e Cardozo, o garboso, podem, como se diz em Dois Córregos, passar mel no beiço dos moços que ainda não têm memória. Aos 51, lembro que a única vantagem da maturidade, até que ela não se esvaia, é mesmo a… memória. Segue o artigo dos dois. Volto em seguida.
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Novos desafios à reforma do Judiciário
Há uma década, o governo Lula criava a Secretaria de Reforma do Judiciário (SRJ), no Ministério da Justiça, inaugurando uma nova forma de enfrentar os graves problemas da administração da Justiça. À época, poucos percebiam o potencial transformador da SRJ, que atingiu seu ápice na aprovação da emenda constitucional (EC) 45/2004. A nova secretaria teve papel político destacado nos trabalhos parlamentares para a reformulação das bases constitucionais da Justiça. Ali se iniciou o processo de reforma.
Apesar das resistências às inovações trazidas pela EC 45, é inegável que o Judiciário alcançou um novo patamar, como constatou esta Folha em editorial recente (“Insistir na reforma”, de 7/4). A grande transformação se alicerçou na criação dos órgãos de controle da magistratura (CNJ) e do Ministério Público (CNMP). O CNJ se consolidou como fiscalizador da conduta dos juízes e planejador administrativo da organização judiciária. Destacou-se atuando em temas sensíveis, como a proibição do nepotismo, e reavivou o princípio de que a Justiça deve servir ao cidadão, não a si mesma, por ser um serviço público essencial.
A EC 45/04 ainda merece elogios por realçar a autonomia da Defensoria Pública, melhorando as condições de acesso dos mais necessitados à Justiça. A proteção dos direitos humanos também foi reforçada, pois o julgamento de graves violações pode se deslocar à Justiça Federal quando necessário. Por meio de institutos, aumentou-se a segurança jurídica e diminuiu-se o volume de processos no STF (Supremo Tribunal Federal), permitindo que a Corte priorizasse a missão de guarda da Constituição. A duração razoável do processo foi reconhecida como mais um direito fundamental.
Nesses dez anos, várias leis processuais foram aperfeiçoadas, com a celebração de dois pactos republicanos. A iniciativa articulou os três Poderes para melhorar o funcionamento da Justiça. O desafio continua sendo superar os entraves ao pleno acesso à Justiça. Quanto menor o poder aquisitivo de quem busca seus direitos, maior a dificuldade para realizá-los. O excesso de processos demorados afasta o Judiciário dos que dele mais precisam.
A nova fase da reforma tem, portanto, dois objetivos centrais: ampliar o acesso à Justiça e modernizar a administração judiciária. Enfoca-se o sistema de Justiça como um todo, e não apenas o Poder Judiciário. É preciso tomar por referência o processo judicial eletrônico, contando com o apoio do CNJ. Os centros de mediação de conflitos também serão difundidos. No governo Dilma, a SRJ já vem se dedicando a essa tarefa, por meio de iniciativas como a Escola Nacional de Mediação e Conciliação.
Os novos desafios compreendem ainda fortalecer a Defensoria, vocacionada a representar os desfavorecidos em suas demandas inadiáveis. Nosso sistema de recursos também se beneficiará de uma organização mais racional, desde que não se comprometam os direitos fundamentais à ampla defesa, ao contraditório, ao duplo grau de jurisdição e ao devido processo legal. Trata-se de garantir maior efetividade às decisões de primeiro e segundo graus, de modo que os tribunais superiores possam se concentrar no desempenho de suas principais competências constitucionais.
O momento é de união de esforços, para superação dos problemas remanescentes. Faz-se indispensável a participação de magistrados, defensores, advogados, promotores, parlamentares, administradores públicos, pesquisadores e organizações da sociedade civil. Só assim o sistema de Justiça se tornará ainda mais acessível, democrático, rápido e eficiente, como querem e merecem os cidadãos brasileiros.
Voltei
Não estou certamente enganado ao entender que doutor Márcio tenta puxar para as gestões petistas, e para a sua em particular, aos avanços havidos no Judiciário. Qualquer operador do direito sabe que a interferência da Secretaria de Reforma do Judiciário foi igual ou inferior a zero. Os avanços se deram mesmo foi no Conselho Nacional de Justiça e não contaram com a intervenção de Bastos ou de órgãos a ele subordinados.
Como esquecer que o então ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos, vocalizando a opinião da OAB, foi contrário a dois aspectos fundamentais da Emenda 45/2004, que trata justamente da reforma do Judiciário: o efeito vinculante e a repercussão geral, considerados hoje em dia vital para um funcionamento mais célere da Justiça. E vem agora puxar para si os avanços havidos no Judiciário??? É brincadeira!
Piada grotesca
Aliás, trata-se de uma piada grotesca haver no Ministério da Justiça, que é um órgão do Poder Executivo, uma secretaria para tratar da… “Reforma do Judiciário”!!! Que tal criar uma também para a Reforma do Legislativo? Aliás, por que o Executivo não cria uma comissão para SE reformar?
Estranho o artigo, um tanto melífluo a esta altura do campeonato. Quando um advogado de mensaleiro se junta com o ministro da Justiça para escrever um artigo sobre a Reforma do Judiciário, algo está fora da ordem. Muito pior quando o texto mais mistifica do que informa. Aliás, Cardozo poderia se ocupar de outras coisas.
Se o ministro está sem serviço, dou uma dica. Sob a sua alçada, no Ministério da Justiça, está, por exemplo, o Depen (Departamento Penitenciário Nacional). Brasil afora, juízes estão mandando condenados em regime fechado para casa porque não há onde alojá-los. Em vez de tomar conta do assunto, em parceria com os estados, a gestão petista prefere sair gritando por aí que o Brasil prende demais — ainda que milhares de mandados de prisão estejam por ser cumpridos. Caso venha a se ocupar do problema, talvez Cardozo possa vir a ser útil ao Brasil.