Há dois anos, o teatro, ou a possibilidade de inovação do teatro, teve uma má notícia. Gerald Thomas anunciou que estava caindo fora. Não queria mais saber do ofício. Não era Jean-Paul Sartre dizendo que a literatura não fazia sentido diante do horror. Era Thomas dizendo que o teatro não fazia sentido diante da banalidade do mundo. Em setembro do ano passado, no entanto, ele estreou Throats, em Londres, com a London Dry Opera Company. Estava de volta. Era a sua leitura do mundo pós-11 de Setembro, o evento traumático da civilização ocidental que ele viu acontecer literalmente da janela de seu apartamento, em Nova York. Na mais absoluta escuridão de sentido, a exemplo do resto do mundo, restou-lhe descer e se integrar às brigadas civis que tentavam socorrer as vítimas.
Throats foi bem-recebida pela crítica, mas nem tanto pelo próprio Thomas. Percebia que o motivo que o levou a anunciar a renúncia ao teatro persistia na sua própria peça. Que motivo? Eu o resumiria assim: o discurso SOBRE a realidade não dava conta da complexidade do mundo nem como política nem como arte; no primeiro caso, ele se mostrava reducionista; no segundo, ah, meus amigos, no segundo, o problema vem lá de longe, da mimese aristotélica, segundo a qual, no drama, o verossímil, o crível, tem prevalência sobre o factível.
Thomas decidiu eliminar de Throats qualquer sombra de discurso programático, organizador, eficiente para a pólis (volto a este ponto daqui a pouco); decidiu também pôr fim a qualquer conforto ao espectador; os atores que estão no palco não querem iludir ninguém; são alegorias. O autor e diretor reduziu também Throats a escombros, e surgiu em seu lugar a performance Gargólios, que ele trouxe ao Brasil, junto com o London Dry Opera Company. A maior parte do espetáculo, pois, se desenvolve em inglês, com algumas falas em português da atriz Maria de Lima, que é portuguesa. Há legendas.
Assisti no sábado à pré-estréia do espetáculo, que fica no SESC Vila Mariana até o dia 24 de julho. Num palco tomado pelos mesmos escombros do 11 de Setembro, estranhos super-heróis disputam espaço no divã de um Freud (Adam Napier) da civilização, que usa vistosos sapatos femininos, vermelhos. Do teto do palco, pende uma mulher seviciada, e seu sangue se esvai em gotas numa espécie de pote macabro e sagrado, onde se persigna um mordomo elegantemente vestido (o espetacular ator Angus Brown). Num painel translúcido, vê-se uma grande imagem, acho, de Os Dez Mandamentos, de Cecil B. DeMille. Thomas vai tratar do mundo desde o começo. Ou desde o fim.
É inútil tentar perseguir o fio de uma narrativa linear. Num dado momento, Maria de Lima ensaia um discurso sobre a crise de valores do nosso tempo, em tom um tanto grandiloqüente, que ficaria bem na boca de um desses petistas ou esquerdistas que dão plantão na esquina. Interrompe a fala e a submete ao ridículo, dizendo ser uma porcaria de texto. Nada de falas programáticas. Thomas — isto arrisco eu, ele não me disse — parece estar disposto a contestar também a contestação.
Os escombros das Torres Gêmeas que estão no palco são menos uma metáfora do que uma metonímia. Numa linguagem muitas vezes telegráfica, cheia de citações, a performance — assim o próprio Thomas define o trabalho — eles são uma parte de algo muito maior que parece aos pedaços. Ali está um retrato angustiado, sarcástico, muitas vezes cômico, de uma cultura ocidental que perdeu suas referências. Ousaria dizer que a linguagem a que Thomas recorre é transgressora, incômoda, agressiva às vezes, mas a força que a inspira tem uma matriz nostálgica, conservadora quem sabe: o tempo em que havia hierarquia de valores.
Não por acaso, um dos poemas — e acho que a Gargólios é isto: um sucessão de poemas — ironiza impiedosamente estes dias dos iPhones, Ipods, Facebook, redes sociais, a era, enfim, da horizontalização da cultura, em que se misturam sagrado e profano, importante e desimportante, raso e profundo. Aqueles super-heróis alquebrados, impiedosamente psicanalisados por um Freud de sapatos vermelhos, são sobreviventes de uma catástrofe do sentido. Sim, estamos diante de uma visão bastante pessimista do mundo. Um dos ótimos momento do espetáculo, vejam lá, é o jogo de palavras entre “entender/ não entender”. Estamos esmagados pela informação. Faltam-nos idéias formadoras.
O próprio Thomas participa do espetáculo, como um narrador. Mas um narrador muito particular: fala por meio de solos de um baixo, que pontuam a música composta para o espetáculo por John Paul Jones, do Led Zeppelin.
É inútil falar e seria inútil não falar da briga que já tivemos, Thomas e eu — se não o faço, alguém o fará. E dela surgiu uma amizade fraterna, que nos gratifica a ambos. Não escrevo sobre o espetáculo do meu amigo, mas sobre o trabalho de um autor e diretor sem receio de ousar sobre a própria ousadia. Aprendemos a aprender na divergência, e elas existem, e compartilhamos algumas preocupações que considero civilizadoras.
De certo modo, aquele rompimento com o “teatro”, no sentido de um discurso programático, está mantido. Thomas preferiu o desconforto. E o Brasil, vocês verão, também está no palco, especialmente quando se ironiza certo tatibitate do nosso verde-amarelismo cafona. Assistam Gargólios. Não busquem o conforto da narrativa, mas o desconforto do sentido.
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Gargólios, de Gerald Thomas
Até o dia 24 de julho no SESC Vila Mariana
Rua Pelotas, 141 – Tel. 5080 3000
No dias 30 e 31 de julho, no SESC Santos