Rápido nas decisões e implacável como poucos, o juiz fluminense Marcelo Bretas, 47 anos, encarregado das investigações ligadas à Operação Lava-Jato no Rio de Janeiro, atravessou 2017 como o condutor da versão local da cruzada anticorrupção deslanchada por Sergio Moro em Curitiba. Desde novembro de 2016, quando mandou prender o maior peixe da sua rede, Sérgio Cabral, Bretas aceitou a abertura de dezessete dos 21 processos em que o ex-governador é réu (o mais recente deles na quarta-feira) e o condenou a 87 anos de prisão. Elogiado pela capacidade de trabalho, o juiz representou com dignidade a mais excepcional iniciativa de restauração da ética no Rio até fazer o que não podia: derrapar nesse mesmo terreno.
Bretas, soube-se agora, foi à Justiça e obteve o direito de receber mensalmente um auxílio-moradia no valor de 4 377,73 reais — igual ao que a sua mulher, a também juíza federal Simone Bretas, já recebia. Dado que o casal reside sob o mesmo teto — um apartamento de cerca de 500 metros quadrados na Avenida Rui Barbosa, no Flamengo, ponto nobre com espetacular vista da Baía de Guanabara —, é evidente que, na prática, a duplicidade do auxílio não se faz necessária. Não que haja ilegalidade no recebimento, mas bonito ele não é.
A ideia de que o Estado deve subsidiar a moradia dos juízes vem de longe — precisamente da Constituição de 1891, que não usou o termo, mas determinou que o salário do juiz não poderia nunca ser reduzido. Como mudar de comarca e providenciar uma nova moradia tiraria uma fração dos rendimentos da categoria, decidiu-se por uma ajuda de custo. A Lei da Magistratura, de 1986, institucionalizou o auxílio-moradia a todo juiz que não tivesse acesso a “residência oficial”, bancada pelo Estado — independentemente de ele ter ou não casa própria. “No Brasil perpetuamos essa triste herança do velho sistema absolutista segundo a qual servidores públicos são entes superiores que merecem toda sorte de privilégios”, diz Roberto Romano, professor de ética e filosofia da Unicamp.
Em 1990, uma lei que se estendeu a todos os funcionários públicos retirou o benefício dos magistrados que já tinham onde morar. Mas as associações de classe, inconformadas, recorreram ao Supremo Tribunal Federal e o ministro Luiz Fux concedeu uma liminar restaurando o auxílio-moradia a todo e qualquer juiz (a questão deve ir a plenário em março). Fux instruiu o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) a regulamentar o acesso ao benefício. O CNJ fez isso, mas impôs uma novidade: vetou o auxílio duplicado. Quando um casal de juízes morasse sob o mesmo teto, só um deles teria direito ao auxílio-moradia. Bretas, como muitos colegas, recorreu e ganhou. E vêm daí os 8 755,46 reais que ele e a mulher agora somam todo mês ao orçamento doméstico.
Bretas cometeu algum crime? Não. Em mensagem no Twitter, foi irônico: “Tenho este hábito ‘estranho’. Sempre que penso ter direito a algo, vou à Justiça e peço”, em vez de “pegar escondido ou à força”. Dimensionou mal, porém, a força do estrago da atitude e da declaração. As críticas foram tantas que ele decidiu encerrar a sua conta na rede social. “Já diziam Platão e Aristóteles: o exemplo vale muito mais que as palavras. Por sua função, o juiz Bretas deveria ser o primeiro a dar bom exemplo”, argumenta Romano. Bretas já havia recebido críticas em dezembro, ao postar no mesmo Twitter uma foto segurando um fuzil depois de um treinamento na Polícia Civil. Um cidadão pode fazer isso? Dependendo da situação, até pode. E um juiz da Lava-Jato? Esse, no mínimo, não deve.
Cada expoente da Lava-Jato está submetido, queira ou não, a uma medida mais alta na régua da moralidade, sob o risco de abrir fissuras na seriedade da operação. A Polícia Federal arriscou e errou a mão no mês passado quando, sem necessidade, algemou e acorrentou Cabral ao transferi-lo de prisão. Deltan Dallagnol, coordenador da força-tarefa de Curitiba, cortou um dobrado para explicar os 219 000 reais que ganhou em 2016 dando palestras sobre seu trabalho. A corregedoria investigou e pronunciou “perfeitamente lícita” a renda adicional (que ele informou doar para a caridade), mas também nesse caso a linha fina entre o “pode” e o “deve” foi esticada para além do recomendável. “Os agentes da Lava-Jato se tornaram a expressão do bom-senso e do espírito público que faltam às autoridades”, avalia o cientista político João Trajano Sento-Sé. Quando um fraqueja, todos perdem um pouco.
Publicado em VEJA de 7 de fevereiro de 2018, edição nº 2568