Jefferson Ricardo da Silva tinha menos de um ano quando começou a frequentar a creche da tia Guga, no Taboão da Serra, região metropolitana de São Paulo. Sua realidade era comum a de muitas crianças no Brasil: sua mãe saia de casa muito cedo, acumulando trabalhos e bicos ao longo do dia, para retornar de noite e manter sozinha uma família de cinco filhos – quatro biológicos e um adotado: o pequeno Jefferson. Nos primeiros anos da infância, o menino ainda tentava entender a dinâmica na qual estava inserido: se ele tinha duas mães, uma que o criava e outra que não conhecia, seria tia Guga uma terceira mãe? Hoje, aos 34 anos, Jefferson, ou melhor, Rico Dalasam – seu nome artístico –, usou essa memória como ponto de partida para o novo álbum, Escuro Brilhante, Último Dia no Orfanato Tia Guga, lançado nesta quinta-feira, 14. Poético até em conversas informais, o rapper paulistano atrela o disco e a nova fase ao movimento de um balanço. “Precisei ir ao máximo para trás e depois para frente, para dimensionar o que vivi até aqui e poder ter uma perspectiva de futuro”, diz em entrevista a VEJA. Nessa viagem ao passado, ele retornou à orfandade – trajetória que, apesar do fundo melancólico, culminou em um disco alegre, dançante, esperançoso e carregado de romance.
Para entender esse momento, é preciso também relembrar o passado recente do cantor. Dalasam ganhou respeito no meio musical em 2016, quando lançou seu disco de estreia, o intrigante Orgunga. A fama veio de fato no ano seguinte, quando a música Todo Dia, gravada por ele ao lado de Pabllo Vittar, virou o hit do Carnaval 2017. A faixa de sua autoria foi um estouro nas plataformas de streaming, passando, em dois meses, de 50 milhões de reproduções. O sucesso que parecia rápido e brilhante para o rapper assumidamente gay, uma raridade no meio, se tornou um pesadelo judicial, quando ele moveu uma ação pelos direitos autorais e de intérprete da canção. “Eu entrei ingênuo nesse meio, então quando percebi a injustiça em que estava envolvido, tomei uma atitude drástica.” O imbróglio durou três anos, chegando a um acordo entre as partes em 2020. Neste período, Pabllo estourou e Rico caiu na teia do “cancelamento”.
Isolado do mercado publicitário e tido como temperamental no meio, ele conta que lidou com um grave déficit de imagem – que até hoje tenta recuperar. Porém, se seus seguidores nas redes sociais não se multiplicaram, o resultado na venda de ingressos de shows o manteve na ativa. “Na época, eu entendi que a única coisa que me restava era a palavra”, conta. “A palavra é meu feitiço. A palavra é a minha reza. A palavra é a minha coisa.” O insight afetou, positivamente, sua música. Do pop sensual e frívolo, ele foi para rap rebuscado, de letras honestas e filosóficas, caminho que fez Dalasam ser comparado ao rapper americano Frank Ocean. Daí nasceram dois EPs notáveis: Dolores Dala Guardião do Alívio (2021) e o Fim das Tentativas (2022) – trabalhos que agora se encerram em uma trilogia com a chegada de Escuro Brilhante.
Novo disco
Com dez faixas, o álbum traz misturas musicais peculiares. Na dançante Jovinho, ele fala do processo de amadurecimento entre batidas eletrônicas e um violão latino envolvente. Em Imã, uma percussão marcada e um flerte com o samba embalam suas rimas. Na faixa Vicioso, o soul e o R&B dominam, com um sample da canção Nem Saudade, da década de 1970, famosa na voz de Eliana Pittman. Na romântica Quebrados, Dalasam recebe o vocal primoroso da cantora Liniker.
No geral, o disco reflete a benção que é a maturidade. “Agora sou eu me carregando no colo”, diz ele. O ato de cuidar de si mesmo faz referência ao longo título do novo trabalho. Apesar de nunca de fato ter vivido em um orfanato – sua mãe biológica era usuária de drogas e lhe entregou para a vizinha, a mãe que o criou –, Dalasam vivia perto de uma casa de apoio para menores, onde fez amigos e se acostumou com duas realidades duras: a primeira, que crianças podem ser devolvidas pelos pais adotivos; e a segunda, ao completar 18 anos, elas devem se virar sozinhas. “Eu cresci com o medo de ser devolvido, logo fiz de tudo para ser exemplar.”
Dalasam, então, se jogou nos estudos e na música. Passou por colégios particulares pomposos, graças a bolsas de estudo por mérito. Em paralelo, começou a trabalhar aos 12 anos em um salão de beleza. A função de cabeleireiro era dividida com a escola e, posteriormente, com a faculdade de audiovisual, até se dedicar de vez à música a partir dos 24 anos de idade. Depois do episódio com a canção Todo Dia, impacto que ele caracteriza como “um cavalo de pau”, o rapaz mostra que não tem planos de ser interrompido. “Eu estou vivendo a vida e olhando para ela, para o futuro. Sou uma bicha preta que carrega uns marcadores, que venho enfrentando desde sempre. Esse novo disco é para que eu possa dançar e celebrar meus movimentos, pois sei que foram bastante corajosos.”