Ruy Castro é quem relembra a anedota no divertidíssimo O Anjo Pornográfico, até agora a maior e mais completa biografia de Nelson Rodrigues:
“Protesto em nome da família brasileira!”, gritou um espectador exaltado, em cena aberta de Beijo no Asfalto (1961).
O motivo da revolta era uma fala de Selminha, interpretada por Fernanda Montenegro, quando ela tentava defender a virilidade de seu marido Arandir (Oswaldo Loureiro) contra as sórdidas insinuações do delegado Cunha (Ítalo Rossi) de que Arandir fosse homossexual:
“Eu conheço muitas que é uma vez por semana, duas e, até, quinze em quinze dias. Mas meu marido é todo dia! Todo dia! Todo dia! (Num berro selvagem.) Meu marido é homem! Homem!
O Anjo Pornográfico, págs. 313-314.
Na mesma época, gente mais ilustrada e mais importante também protestava em nome da Família Brasileira. É o caso de Carlos Lacerda. Embora soubesse que Nelson Rodrigues fosse mais direitista que J. Edgar Hoover, não se cansava de proclamar que o dramaturgo era parte do plano comunista do jornal A Última Hora para destruir a sempre ameaçada Família Brasileira.
Claro que tudo não passava de oportunismo retórico. Lacerda queria destruir Getúlio Vargas, mas antes precisava destruir a sua base na imprensa, A Última Hora, e não havia estratégia mais apropriada do que atacar a maior estrela do jornal.
O curioso é que a Família Brasileira não foi ameaçada só por peças e artigos de esquerdistas que na verdade eram direitistas, mas também pelo chamado capitalismo cultural. Ao longo das décadas de 1970 e 80, os milhares de leitores brasileiros do panfleto socialista Para Ler o Pato Donald tinham certeza de que o imperialismo ianque estava corroendo a América Latina com a ajuda das histórias em quadrinhos.
Nos gibis da Disney, por exemplo, os personagens centrais são tios e sobrinhos — e não pais e filhos — porque o objetivo do Tio Sam é sabotar as relações familiares e consolidar as relações baseadas na “hierarquia do capital”. Dentro dessa lógica, proteger a família não seria coisa de direitistas conservadores e reacionários, mas de esquerdistas dispostos a resistir à imoralidade da economia de mercado!
E hoje, quem será que está rondando para dar o bote na coitadinha da Família Brasileira? A resposta pode ser encontrada em expressões como “ideologia de gênero” e “gayzismo generalizado”. Enquanto a primeira é difundida por uma esquerda satânica e inescrupulosa, o segundo encontra as suas bases num capitalismo ávido por seduzir novos públicos consumidores.
Naturalmente, uma entidade sitiada como a Família Brasileira precisa de defensores. Não foi apenas o Carlos Lacerda que teve a brilhante ideia de lucrar com a proteção de um modelo que atualmente estaria sendo atacado por teorias de gênero e pelo Museu Queer. Os maiores canalhas que ocuparam e ocupam o Congresso seriam capazes de esfolar a unha do dedo mindinho pela Família Brasileira — Eduardo Cunha entre eles.
A grande verdade, entretanto, é que a Família Brasileira está indo muito bem, obrigado. Se os homossexuais lutam para aderir ao modelo, significa que a instituição ainda tem um longo futuro pela frente. Quando os héteros não aguentarem mais a barra, os gays assumirão o comando para levar o barco adiante. Longe vai o tempo em que eles desejavam os becos escuros e os clubes sodomíticos como áreas de atuação.
Querem agora o casamento civil, a adoção de crianças carentes, aquela cerquinha branca no jardim, samambaias na janela da sala, uma carteirinha de sócios para jogar tênis no Country Club, a monotonia do leito conjugal e a necessidade de uma DR a cada três dias, ou seja, tudo o que caracteriza a boa e velha Família Brasileira, mais prestigiada do que nunca.
Não há motivo para alarmismo, minha gente. O fim dos tempos pode até acenar no horizonte, mas a Família Brasileira não vai largar o osso. De jeito nenhum. Se foi mais forte do que a esquerda e a direita em fogo cruzado, por que sucumbiria a uma simples revolução de costumes?