Hoje faz 140 anos que José de Alencar morreu.
Sofria de tuberculose, mal comum entre os escritores de sua época, e viajou à Europa com a mulher e seis filhos em busca de ares mais puros para os pulmões. Detestou Londres e Paris, cidades barulhentas demais para o seu espírito colonial, mas encontrou algum repouso em Lisboa. Voltou antes do previsto, sem a cura almejada, e entrou numa espiral de decadência física que acabaria por matá-lo em 12 de dezembro de 1877. Estava endividado e via o seu nome ser achincalhado nos jornais por inimigos políticos e literários.
Tinha apenas 48 anos, mas deixou uma obra gigantesca que sobreviveria ao seu tempo e chegaria aos nossos dias — apesar de escrever num estilo que envelheceu com rapidez. Não existe vestibular que não exija conhecimentos sobre algum romance de Alencar. Iracema (1865) e Senhora (1875) parecem ser os preferidos das comissões examinadoras. É muito comum, portanto, ouvir dos estudantes reclamações sobre a obrigatoriedade da leitura de livros tão velhos. Por que são importantes? Qual o motivo de conhecê-los em pleno século XXI?
Seguem algumas respostas:
1. Alencar é o maior dos nossos contadores de histórias
A literatura brasileira possui dois patriarcas inegáveis: José de Alencar e Machado de Assis. O primeiro cultivou uma escrita verborrágica e exuberante, repleta de cores e sons que pretendiam materializar o exotismo dos temas que trabalhava. Já o segundo foi inventor da linguagem direta e objetiva, da metáfora fina e da ironia sutil, sem o desperdício de adjetivos no tratamento de assuntos menos aventurosos e mais existenciais. Machado venceu todas as guerras de preferência e criou uma turbamulta de discípulos, escritores que geralmente apostam na reflexão, na análise psicológica, na sensibilidade das pequenas cenas — e não na narrativa “vulgar” de fatos que, encadeados com motivação específica, tendem a adquirir características épicas. Ganha-se por um lado, perde-se por outro, já que nenhum escritor brasileiro soube contar histórias como José de Alencar. Quem quiser provas vai encontrá-las em O Guarani (1857) e O Sertanejo (1875), dois dos maiores romances de aventuras já escritos em língua portuguesa. Vale a pena enfrentar o cipoal de descrições hoje consideradas enfadonhas para descobrir histórias tão extraordinárias que merecem viver para sempre.
2. Alencar criou personagens inesquecíveis
Peri, Iracema, Jaguarê, Lucíola, Fernando Seixas — a lista é enorme. Novamente caímos numa comparação com Machado de Assis, outro profícuo criador de personagens memoráveis. Se as criaturas de Alencar se caracterizam por verbos de ação, as de Machado podem ser definidas mais facilmente por predicados nominais. Enquanto Capitu, por exemplo, seria uma cigana de olhos oblíquos e dissimulados, Aurélia Camargo enfrenta os preconceitos da sociedade oitocentista para efetuar uma vingança que terá terríveis consequências emocionais. Aurélia, a propósito, funciona como uma espécie de marco zero da moderna mulher brasileira. Num tempo em que personagens femininas serviam como decoração de cena ou prêmio para o herói, Alencar teve a ousadia de escrever sobre uma mulher independente. Nesse sentido, outra personagem marcante é Maria da Glória, codinome Lúcia, obrigada a se prostituir depois de ser expulsa de casa. Era uma temeridade escrever sobre essas coisas na época, mesmo que, no fim das contas, Aurélia tenha cedido ao “santo amor conjugal”, ao passo que Lúcia pagou por seus erros com a morte.
3. Alencar foi o primeiro a entender que o Brasil é múltiplo e plural
Em 1872, no prefácio de Sonhos d’Ouro, Alencar propôs uma divisão temática dos seus romances. Seguindo o objetivo de escritores europeus como Honoré de Balzac, pretendia criar uma espécie de totalidade artística na apreensão da realidade nacional. Não havia apenas um Brasil, mas inúmeros Brasis — ideia batida hoje em dia, mas original na época, que fez Alencar escrever sobre regiões as quais nunca havia visitado (caso de O Gaúcho, de 1870, desde o lançamento considerado o pior dos seus livros). A divisão contava com romances urbanos, regionais, históricos e indianistas. Ele queria deixar claro que o seu projeto compreendia as potencialidades de uma Atenas tropical como o Rio de Janeiro, a riqueza das zonas agrícolas, o valor heroico da nossa história e a diversidade étnica dos povos que formam a nação. Mas, claro, nesse último quesito faltou um elemento fundamental. Para Alencar, o povo brasileiro seria o resultado da mistura dos sangues europeu e americano, sem espaço para as influências africanas. A exclusão do negro foi uma regra entre a maioria dos escritores românticos.
4. Alencar “inventou” o Brasil
Aqui se encontra o fator político da sua obra, talvez o mais importante e o mais difícil de compreender. Alencar viveu a sua vida adulta durante o Segundo Reinado, período em que se identificou a necessidade de se criar uma mitologia nacional. O que significava ser brasileiro? Quem eram os nossos heróis? Em que símbolos estariam contidos o nosso valor? Como não existiam as atuais campanhas de publicidade, todo esse imaginário precisava ser forjado através da arte, daí o porquê de D. Pedro II patrocinar tantos pintores, escultores, músicos, dramaturgos e escritores. Gonçalves de Magalhães foi encarregado de escrever a epopeia nacional que faltava, os nossos Lusíadas, algo que tentou engendrar com um gigantesco poema chamado A Confederação dos Tamoios. Não funcionou. A obra era ruim demais, e todos passaram a detoná-la depois que um jovem crítico, sob pseudônimo, teve a audácia de desbancar o projeto do Imperador. O jovem crítico, claro, era ninguém menos que José de Alencar. Ele mesmo se encarregaria de erigir o mito da nação indígena com O Guarani, Iracema e Ubirajara.
5. Alencar não tinha medo de ninguém, nem do Imperador
A polêmica da Confederação dos Tamoios não foi a única vez que ele pisou nos calos de D. Pedro II. Os dois passariam a vida em implicâncias mútuas (com evidente vantagem para o Imperador), já que Alencar, seguindo os passos do pai, entraria para a política e se destacaria por seu amor à oposição. Os jornais o apelidaram de Pirracento, e não é de admirar que, no fim da vida, mesmo doente, tenha recebido ataques vingativos de todos os lados. Não houve polêmica em que não se metesse, e não houve desafeto que não cultivasse com teimosia e uma certa infantilidade. Isso não o impediu de ocupar um cargo importante como o de Ministro da Justiça, mas certamente frustrou as suas pretensões de se tornar Senador do Império, indicação que cabia a D. Pedro II. “O senhor é muito moço”, teria dito o monarca. “Sou?”, respondeu o Pirracento. “Se é assim, vossa majestade deveria ter recusado a coroa antes de se tornar maior de idade”. Alencar virou as costas para o Imperador e para a própria carreira política.
Reza a lenda que, há exatos 140 anos, quando D. Pedro II recebeu a notícia da morte do escritor, não hesitou em elogiar-lhe o talento e a inteligência. Mas também não deixou de soltar um resmungo que foi claramente ouvido pelos servos: “Era um homenzinho muito malcriado!”