Vai, malandra começa com o passeio de uma bunda toda molenga e cheia de celulite. Será que é da Anitta? Muitos manifestaram incredulidade nas redes sociais, mas é sim. Então vamos seguir a bunda. Ela embarca na garupa de um moto-táxi com a placa ANT 1256, possível referência ao projeto de lei que pretende criminalizar o funk.
A moto acelera e literalmente penetra o Morro do Vidigal, representado por chuteiras penduradas em fios de luz, bares alegres, um galo que fugiu da Cidade de Deus, cartazes com mensagens evangélicas e um mar infindo de lajes com varais de roupa e caixas d’água azuis.
A câmera volta para a bunda, que deixa a moto e vai requebrar ao lado de uma pequena pilastra — sugestão pouco sutil de que a cantora/dançarina poderia ser empalada. E agora, minha gente? O clip propõe o empoderamento feminino ou a misoginia mais violenta e vulgar?
É cedo para perguntas, até porque a cena vai além da mera sexualidade e mostra mais claramente que as botas da funkeira, que ainda não mostrou o rosto, estão estampadas com a bandeira do Brasil. Proposital ou não, o detalhe é importante para o que vem a seguir.
Quando Anitta enfim aparece com um cabelo que ensejou debates natimortos sobre apropriação cultural indevida, o clip corta para uma laje em que dezenas de mulheres estão se bronzeando num dia nublado. As bundas se multiplicam e preenchem a tela com a realidade da carne.
E a própria Anitta, vestida apenas com fita isolante, aparece de corpo inteiro para responder, desafiadora, à proposta feita pela voz masculina da composição:
Tá pedindo, an, an
Se prepara, vou dançar, presta atenção
An, an tutudum an, an
Cê aguenta an, an
Se eu te olhar
Descer, quicar até o chão
Seria perda de tempo discutir a letra ou a música de Vai, malandra, tudo indefensavelmente simplório e pré-gutural, mas as imagens e o sequenciamento do clip podem revelar aspectos curiosos da nossa cultura. Da orgia de ícones apresentados, vamos nos concentrar em dois cruciais: as bundas e a favela — e aqui diremos “favela” mesmo, sem a hipocrisia do eufemismo “comunidade”, já que o rapper Maejor, mesmo cantando em inglês, usa o termo com toda naturalidade.
É provável que o primeiro registro da malandragem carioca esteja no clássico Memórias de um Sargento de Milícias, de Manuel Antônio de Almeida, publicado em folhetins entre 1852 e 1853. Como o jabuti que engana a onça nos contos infantis, Leonardo Pataca vivia aprontando nos bairros e nas festas populares do Rio de Janeiro, sempre escapando por um fio de ser capturado pelo Major Vidigal (figura histórica que batizou morro!), o chefe de polícia que pretendia pôr o nosso herói na linha.
Eis a representação do eterno combate entre a liberdade do indivíduo e as regras comezinhas do Estado (ou da Moral), sendo que o indivíduo espera vencer através de uma malandragem que pressupõe as vistas grossas de quem, também malandro, trabalha para o Estado e acaba dando um jeito — um jeitinho — de favorecer os amigos e os parentes.
Cem anos se passaram até que Leonardo Pataca fosse transformado no pitoresco Zé Carioca. Isso aconteceu por causa da Segunda Guerra Mundial, quando os norte-americanos se aproximaram culturalmente da América Latina para impedir que fôssemos seduzidos pelos nazistas. Carmem Miranda foi para Hollywood e Walt Disney veio para o Rio, olha que beleza! Era a consolidação universal do bom malandro carioca, o feliz habitante deste paraíso carnavalesco que se chama Brasil.
A guerra acabou e tudo caiu no esquecimento, mas os brasileiros não deixaram de pegar a dica: “o Tio Sam está querendo conhecer a nossa batucada”! E a batucada, como se sabe, sempre esteve nas favelas, notadamente nas cariocas, que parecem ter trocado o samba pelo funk e os tamborins pelas bundas sem photoshop. Vai, malandra é o exemplo mais recente e talvez mais abrangente do teatrinho que nos acostumamos a fazer para nós mesmos e — olha o detalhe! — para os gringos.
Aceitamos com facilidade o rótulo de “bons selvagens” e fingimos viver num ambiente em que a experiência do corpo fala mais alto, daí a pertinência de se colocar bunda com bunda em cenas que desejam celebrar a liberdade de viver apesar de tudo. É por isso que a pergunta sobre empoderamento ou misoginia não faz muito sentido no contexto do clip. A objetificação do corpo é óbvia, mas é alegremente consentida, matreira e orgulhosa, mais ou menos como o nosso ato de encenar a peça de felicidade que os olhares externos esperam de nós.
É a trampolinagem do jabuti contra a onça, do Leonardo contra o Vidigal, do Zé Carioca contra o Pato Donald. Do mesmo modo que o tráfico só terminará quando os narizes da classe média se fecharem, o funk e a sua “vulgaridade” hão de viver enquanto os olhos e os ouvidos estiverem abertos para o exotismo do morro — e não há lei que possa subverter essa realidade. Vemos Anitta tomando uns tapinhas na bunda, mas é ela quem está batendo em sentido figurado.
Infelizmente, o clip se contradiz e perde força a cada vez que Anitta começa a dançar em grupo para imitar as popstars americanas. Pagar esse tributo sob o pretexto de conquistar os grandes mercados indica que a trampa só funciona pela metade, e que a onça, afinal de contas, permanece no controle. Muito melhor a festa com o desfile das personagens inusitadas, magras e gordas, feias e bonitas, todas empenhadas em reafirmar a aventura da vida pelo relacionamento aberto com o próprio corpo.
No final, quase imperceptivelmente, o passeio silencioso já não mostra uma bunda, mas o rosto de alguém que caminha para fora da favela. Eis a verdadeira malandragem.