A política americana está cada vez mais louca – e nem estamos falando da cada vez mais bizarra teia do impeachment que envolve Donald Trump, ucranianos suspeitos e deputados americanos totalmente sem controle.
O assunto aqui é Tulsi Gabbard, uma das quatro mulheres que estão tentando conseguir ganhar a candidatura a presidente pelo Partido Democrata.
Ao contrário de Elizabeth Warren, que passou à frente de Joe Biden em diversas pesquisas, Tulsi é da turma do fundão. Nunca aparece com mais de 1% ou 2% das preferências.
São comuns os políticos que se candidatam mesmo sabendo não ter chance, mas querem se projetar e ficar conhecidos em nível nacional. Quem sabe numa eleição futura, ainda mais para uma política jovem como Tulsi?
Mas são poucos os com um perfil tão variado como ela.
A deputada pelo Havaí tem 38 anos, é major da Guarda Nacional tendo servido em combate no Iraque, é samoana por parte da avó paterna e segue o hinduísmo por influência da mãe, uma americana de origem alemã que se converteu à religião predominante na Índia.
Faz lutas marciais desde criança e, como havaiana, obviamente, pega onda.
Recebeu o pedido de casamento do segundo marido, Abraham Williams, quando os dois estava fazendo surfe. O anel de noivado estava colado à prancha dele com fita adesiva dourada.
Politicamente, é de esquerda. Na eleição passada, foi a primeira deputada a declarar apoio a Bernie Sanders, o candidato socialista; propõe a liberação da maconha e um programa universal de saúde.
Mas embaralha a cabeça de quem segue manuais rígidos.
Defende a Segunda Emenda, por exemplo. O artigo constitucional que garante o direito à posse de armas virou anátema para os progressistas.
Acha que o sistema de imigração está falido e que “quem trabalha e ganha dinheiro” não é ruim para o país – esta uma resposta a pergunta pegadinha do New York Times, se “alguém merece ter um bilhão de dólares”
No passado, militou com o pai, que é membro do senado estadual do Havaí, numa organização contra o casamento de homossexuais (vive pedindo mil desculpas por isso).
O tema principal de Tulsi Gabbard é o desengajamento americano de todos os frontes onde o objetivo seja interferir na política local. Tipo derrubar Saddam Hussein, Muamar Kadafi ou, principalmente, Bashar Assad.
Em 2017, ele fez uma visita altamente contestável ao homem forte da Síria, o único resistente da série mais recente, com ajuda da Rússia, do Irã e de métodos imensamente brutais.
“Sou a favor da guerra para combater o terrorismo e contra para promover mudanças de regime”, já disse ela.
MULHER DE MOSCOU
Com tantas peculiaridades, Tulsi ganhou a mais estranha delas: muitos democratas da elite de influenciadores começaram a dizer que ela está sendo manipulada pelo regime russo para se tornar uma espécie de candidata da terceira via e, assim, bagunçar a eleição presidencial, favorecendo a reeleição de Donald Trump.
A acusação saiu das sombras e ganhou endosso do New York times, numa reportagem com título malandro, “O que, exatamente, Tulsi Gabbard está aprontando?”.
Entre outras coisas, é mencionado o apoio de supremacistas brancos a Tulsi nos debates democratas. Escapou à repórter a ironia evidente: a pré-candidata não é considerada branca nos Estados Unidos.
Foi nesse momento que Hillary Clinton se sentiu liberada para soltar os cachorros em cima da deputada havaiana.
Disse que Tulsi Gabbard está sendo “cevada” pela Rússia para enfraquecer o futuro candidato democrata.
“Eles sabem que não podem ganhar sem uma terceira candidatura.”
“É a preferida dos russos. Eles têm um bando de sites e bots e outras maneiras de apoiá-la”, acusou Hillary.
Ou seja: pregou na deputada veterana de guerra o mesmo rótulo que todo o establishment tenta colar em Donald Trump desde sempre (o caso da Ucrânia mudou um pouco o rumo e pode ser muito mais deletério para o presidente).
Tulsi saiu dando caneladas, mas sem perder a compostura nem abalar um fio da chamativa mecha branca que tem na frente da cabeleira negra.
“Aqueles que são contra a política de mudança de regime, da qual Hillary Clinton foi a grande defensora por muito tempo, serão rotulados de traidores do país que amamos. É repugnante em todos os níveis.”
“Muito obrigada, Hillary Clinton”, ironizou, chamando a candidata derrotada por Trump de “rainha da guerra” e “personificação da corrupção e da podridão que tem assolado os democratas há tanto tempo”.
É claro que Trump entrou na briga e, com gosto, enfiou a faca: “Hillary ficou louca”.
As críticas a Tulsi aumentaram depois do último debate entre os pré-candidatos democratas. Suas posições mais centristas, comparativamente, considerando-se que a maioria se moveu para a esquerda, foram elogiadas por eleitores mais à direita.
Para complicar, a postura contra a política de intervencionismo armado coincide, no momento, com a altamente contestada iniciativa de Donald Trump de retirar militares americanos que apoiavam os curdos da Síria, abrindo caminho à interferência da Turquia.
“Se eles querem brincar no tanque de areia, tem muita areia lá”, definiu Trump, nos termos nada elevados que usa, querendo dizer exatamente o mesmo que Tulsi Gabbard: eles que se virem.
O problema é que para os Estados Unidos, como superpotência, não existe a opção “eles que se virem”.
Com maior ou menor intervencionismo, a estabilidade regional é importante demais para ser deixada nas mãos das regiões envolvidas.
Ser superpotência, com as vantagens imensas e também as responsabilidades envolvidas, não é para qualquer um.
Ainda mais num momento de sandice coletiva em que o presidente dos Estados Unidos e uma pré-candidata democrata são igualmente acusados de ser agentes russos.
A iniciativa de Trump na Síria está provocando um racha profundo na direita trumpista. E a esquerdista Tulsi está levando pancada da sua turma.
E Hillary Clinton achou que este era um bom momento para sair da toca e atacar uma candidata quase folclórica.
É claro que Tulsi saiu ganhando. Apareceu em todos os noticiários como vítima de uma acusação sem nenhum fundamento sólido ou sequer especulativo de ser uma traidora a serviço dos russos.
Lembram quando isso acontecia com Trump?