Kamala Harris é sem dúvida uma boa candidata e a maneira como está sendo “vendida” pelo Partido Democrata é nada menos do que brilhante. Qualquer interessado em política e campanhas eleitorais deveria prestar atenção em como está funcionando muito bem a combinação de uma embalagem sensacional, montanhas intermináveis de dinheiro, foco na mensagem (Donald Trump é um horror, resumidamente) e uma convenção que pareceu a versão americana da Coreia do Norte – com o amado líder indo para o esquecimento e a estimada líder arrancando lágrimas de emoção.
A escolha de Tim Walz também foi uma boa opção: ele apela ao eleitorado branco das cidades do interior pelo próprio biotipo. Nada do que foi levantado contra Walz até agora, incluindo o quase inacreditável número de mais de trinta viagens à China e elogios ao regime maoísta, colou. Kamala o levou para a entrevista de ontem à CNN. “Mulher forte e capacitada pede a homem para acompanhá-la a entrevista de emprego caso façam perguntas difíceis”, provocou o site satírico Babylon Bee.
Não precisava. As perguntas foram amplamente previsíveis e a entrevista durou apenas 27 minutos, quase impensável para quem quer o cargo mais poderoso do mundo. Mas se a ideia era mostrar uma candidata relativamente moderada, funcionou: ela não fez declarações radicais, como no passado, e nem de longe se aproximou do desastre de Joe Biden no debate com Trump.
A ideia de manter tudo como está faz sentido: para ela, o vento sopra a favor, embora ainda não de maneira definitiva.
TORCEDORES APAIXONADOS
Kamala agora está à frente de Trump, embora por muito pouco, em três de sete estados pêndulo, aqueles onde existe uma disputa real, o que define a eleição: Georgia, Michigan e Nevada. A Georgia era considerada confortavelmente no bolso do candidato republicano.
Trump mantém uma pequena vantagem em Michigan, Pensilvânia, Arizona e Carolina do Norte. Na média das pesquisas do RealClearPolitics, ela continua a subir: 48,3% contra 46,6%. Menos positivo é o índice de favorabilidade, mostrado pelo 538: 45,6% a veem de forma positiva; 47,5%, de forma negativa. O 538 também dá 52,% de probabilidade de vitória para Trump.
Com a maioria dos órgãos de comunicação fazendo o papel de torcedores completamente apaixonados por ela, Kamala também se beneficia da orientação para atenuar ou até desmentir posições contenciosas dela num passado bem recente. Foi isso que procurou mostrar na curta entrevista.
Agora, a ultraliberal Kamala é a favor do fracking (era contra; deu uma resposta enrolada na entrevista a Dana Bash), promete controlar a fronteira (era a favor da porteira aberta; agora quer uma “lei”) e vai ser, obviamente, uma fera contra o crime. Evoca seu passado como procuradora-geral, equivalente a secretária da Justiça e promotora-chefe, da Califórnia (foi linha dura, depois virou linha mole e agora quer parecer durona de novo).
Existe um ditado na política americana de que a campanha eleitoral é feita à esquerda – promessas de benefícios infinitos – e o governo, com os requisitos de responsabilidade e racionalidade, tende à direita. Kamala Harris está fazendo o contrário: com sua imagem extremamente progressista, tem que apelar ao eleitor que ainda não decidiu entre ela e Trump ou talvez até mude de vote. Não é, definitivamente o tipo de simpatizante padrão do Partido Democrata.
ABORTO MÓVEL
Mas que tipo de presidente ela seria? Todos os indícios são de que seria uma versão 2.0 de Joe Biden, um centrista que também contrariou a tendência normal e foi para a esquerda, em termos de gastos desenfreados como o pacote de estonteantes 1,6 trilhão de dólares do programa de transição climática e obras de infraestrutura (adivinhem por que empresas e bancos de investimentos de venda de créditos de carbono, entre outros prodígios da matemágica, apoiam solidamente os democratas).
O plano dela nesse sentido já foi de injetar 10 trilhões de dólares – isso mesmo – num programa similar. Ou seja, quase um terço de todo o PIB americano. É de tirar o fôlego – e de dar enfarte em todos os especialistas americanos que se apavoram com o endividamento crescente do país – os 35 trilhões aumentam à razão de 8,5 bilhões por dia.
Kamala Harris tem atenuado e até recuado essas posições, mas fundamentalmente favorece gastar como um porta-aviões inteiro de marinheiros bêbados. O fato de que os Estados Unidos estão crescendo a 3%, para inveja do congelado mundo desenvolvido, contribui para o fundo do cofre parecer mais distante. O discurso de Kamala está antenado com o dos militantes democratas, embora muitas vezes estes pareçam habitar uma bolha à parte.
Só para dar uma ideia de como os democratas radicalizaram, durante a convenção em Chicago, a maior rede de clínicas de aborto do país, a Planned Parenthood, colocou uma unidade móvel para oferecer, de graça, pílulas abortivas e vasectomias. Parece piada, mas é verdade.
Quando foi uma fracassada pré-candidata presidencial, em 2019, Kamala propôs a suspensão das iniciativas dos estados mais conservadores, onde o aborto passou a ter diferentes restrições depois de uma decisão da Suprema Corte. Também foi defensora do aumento dos juízes da própria Suprema Corte para quebrar a atual maioria conservadora. Teria que ter um apoio no Congresso que dificilmente conseguirá.
TAL PAI, TAL FILHA?
Kamala tem uma equipe de alta rotatividade – um ponto em comum com Donald Trump; ambos vivem dispensando assessores ou estes pedem demissão. Mas mantém uma relação estreita com a irmã, Maya, muito mais à esquerda do que ela. Com o pai, um professor de economia de tendência desenvolvimentista, tem laços estranhos. O jamaicano Donald Harris, professor aposentado de Stanford, mora em Washington, mas não apareceu até agora ao lado da filha. Ele deu aulas em duas temporadas na Universidade de Brasília. Não deveria estar próximo de Kamala agora que ela concorre a presidente dos Estados Unidos? E o que o professor, que já foi conselheiro econômico do governo jamaicano, aconselharia?
Assim ele foi descrito pela revista Fórum: “A relação de Don Harris com o pensamento marxista ajudou a moldar uma visão de economia que é crítica às narrativas dominantes e atenta às questões de justiça econômica e social. Sua abordagem educacional e suas publicações têm incentivado o pensamento crítico e a avaliação das políticas econômicas através de uma lente que considera a equidade e a justiça social, alinhando-se com muitos princípios marxistas”.
A linguagem diz tudo. Kamala teve um relacionamento distante com o pai, que se divorciou da mãe, a pesquisadora de origem indiana Shyamala Gopalan Harris, quando ela tinha apenas três anos. Mas fala exatamente do jeito constatado acima sobre equidade. Já explicou que é diferente de igualdade. Esta, é garantir que todos tenham as mesmas condições quando começam. Aquela, que todos cheguem exatamente ao mesmo lugar.
Já pensaram isso nos Estados Unidos?