Um presidente socialista? Bernie Sanders espalha pânico
E é entre os próprios democratas, esfaqueando-se entre si por causa da velha questão: voto útil ou voto por convicção, num candidato fora do padrão?
Depois de passar três anos espalhando que o Partido Republicano vivia uma guerra civil por causa das divisões insufladas por Donald Trump, o Partido Democrata é que está pegando fogo.
O motivo é, basicamente, o mesmo, com sinal inverso: um candidato completamente fora da curva de repente parece capturar a imaginação das bases.
O candidato é Bernie Sanders, tão fora da curva que nem sequer pertencia ao Partido Democrata.
Fez carreira política como deputado e senador pelo gélido estado de Vermont como independente.
Nessa posição defendia as ideias mais à esquerda no espectro político convencional americano, a começar pela autodefinição de “socialista democrático” – atenção, não confundir com social-democrata.
Todo mundo no Brasil consegue imaginar um político do fundão, isolado em seu radicalismo, que de repente dispara e se torna um candidato viável à presidência.
Os brasileiros também sabem muito bem que as melhores brigas políticas são as internas, entre correntes diferentes de um mesmo partido.
É isso que está acontecendo com os democratas desde que Sanders desempacou de um eterno segundo lugar nas pesquisas e, segundo algumas delas, até passou à frente do favorito, Joe Biden.
Em nível nacional, ainda está apertado, com espaço para muitas reviravoltas. Em nível local, no estado de Iowa, onde hoje acontece a primeira eleição primária, Bernie alcançou uma posição mais consolidada.
Quando as pesquisas começaram a indicar esta mudança, baixou o pânico entre as alas mais tradicionais do Partido Democrata.
O motivo faz sentido: um candidato tão à esquerda nunca ganhará uma eleição nacional. Ainda mais contra Donald Trump.
No fundo, é a conhecida defesa do voto útil.
O raciocínio inverso também tem peso: um candidato convencional como Joe Biden, com nível de entusiasmo próximo de zero entre as bases, também enfrentará uma pauleira contra Trump.
Melhor optar pelo candidato de risco, que tem apelo entre a juventude progressista e até entre os coroas (Iowa é um exemplo disso), apesar de seus 78 anos e um enfarto recente.
Como abrir mão de um candidato que tem o apoio da cantora Ariana Grande (173 milhões de seguidores no Instagram, atrás apenas do campeão mundial Cristiano Ronaldo) e da modelo Emily Ratajkowski (25 milhões e os seios naturais mais bonitos do show business)?
A mesma questão já havia sido esboçada quando Bernie disputou as primárias com Hillary Clinton.
Com a máquina na mão, além de ser dada como vencedora garantida, Hillary habilmente estrangulou o rival.
Em troca, acredita piamente que foi sabotada por Bernie Sanders e, por isso, acabou perdendo para Trump nos votos do Colégio Eleitoral.
A coisa ficou entalada na garganta de Hillary. Aliás, o que não falta são coisas entaladas na garganta dela desde a espantosa derrota para Trump.
Agora, estão saindo. Numa entrevista recente, soltou as feras: “Ninguém gosta dele, ninguém gosta de trabalhar com ele, nunca conseguiu fazer nada”.
Por causa disso, foi vaiada abertamente, em público, pela deputada Rashida Tlaib, uma das integrantes da “jovem guarda” de esquerdistas estreantes na Câmara. Alexandria Ocasio Cortez é a mais conhecida dessa turma. Todas, claro, estão fechadas com Sanders.
Rashida, depois, pediu desculpas enviesadas.
O ódio a Hillary entre as tendências de esquerda do Partido Democrata é um dos aspectos mais sulfúricos da guerra civil.
Teoricamente, mulheres não atacariam mulheres – quem diz isso são elas.
Na prática, é tudo o contrário. Hillary já acusou uma candidata sem chances, fora da disputa, Tulsi Gabbard, de ser uma espécie de agente plantada pelos russos para enfraquecer os democratas.
E não desistiu de atacar Bernie Sanders, comparando a atitude comprometida e elegante dela, de abraçar a campanha de Barack Obama depois de ser derrotada por ele nas primárias, e o que considera sabotagem pura dos sanderistas.
“Muitas pessoas altamente identificadas com a campanha dele incentivavam as pessoas a votar num terceiro partido ou a não votar”, acusou ela. “Teve um impacto”.
Outros figurões do partido, como John Kerry, substituto de Hillary como secretário de Estado no governo Obama, também estão entrando na campanha de Joe Biden à medida em que aumenta o perigo de que Bernie Sanders passe a perna nele.
Pressentem o que Trump faria com um adversário que já defendeu Fidel Castro, quer tirar presos condenados da cadeia e as armas de cidadãos honestos, fechar as usinas nucleares e a exploração de gás e petróleo pelo sistema de fraturamento hidráulico (o fracking), acabar com a pena de morte nos estados onde ainda subsiste e apoiar o aborto até o limiar do parto etc etc etc.
Sem falar na famosa lua-de-mel na antiga União Soviética, o idílico destino que escolheu quando se casou com a segunda mulher.
É altamente reducionista usar de modo ingênuo a teoria do movimento pendular na política. Mas também é impossível ignorar que o presidente mais à esquerda dos Estados Unidos, Barack Obama, influenciou a eleição de seu oposto total, Donald Trump.
Agora estaria ocorrendo o movimento oposto, incentivando a arrancada de um candidato que chegaria à Casa Branca com a foice e o martelo escondidos debaixo da camisa.
Quando e se isso acontecer, será um telúrico confronto de ideias.
Trump, a encarnação viva do capitalismo sem disfarces, contra o primeiro socialista puro e duro a disputar uma eleição americana por um grande partido.
Enquanto não chega essa fase, é divertido, como sempre, ver correligionários esfaqueando-se em público.
Faz parte do processo eleitoral americano.
Já houve até um precedente histórico parecido. No auge dos protestos contra a guerra do Vietnã, em 1972,o campo progressista foi todo para o lado de George McGovern, provocando as famosas cenas de vaias e confrontos na convenção do Partido Democrata.
Figuras mais ao centro chegaram a criar um movimento chamado “democratas por Nixon”.
McGovern perdeu para Nixon em 49 dos 50 estados americanos.
Por enquanto, ainda está longe dessa etapa. Joe Biden tem o apoio da máquina democrata e das grandes fortunas que tradicionalmente azeitam o partido.
Não é charmoso como Ariana Grande e Emily Ratajkowski, mas pesa um bocado.
Até chegar ao Super Bowl, o confronto final, a chapa dos rivais septuagenários vai ferver.