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Quem matou a filha do mentor intelectual da política imperialista de Putin

Num mundo em que pouca coisa é o que parece ser, as hipóteses são várias - e todas elas deixam o líder russo em posição ruim

Por Vilma Gryzinski 23 ago 2022, 08h18
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  • Moscou virou um vespeiro onde, nos mais altos escalões, se entrechocam sentimentos como ódio, desejo de revanche, medo e dúvidas. Muitas dúvidas. Todas provocadas pela bomba que matou Daria Dugina de uma forma que plantou a guerra na Ucrânia bem no centro do poder russo.

    Quem matou a filha de Alexander Dugin, um filósofo que mistura sacadas geniais com insanidades eslavófilas, proporcionando o embasamento teórico para o expansionismo que Vladimir Putin abraçou com tanto entusiasmo?

    Algumas das hipóteses:

    1- Os serviços de inteligência da Ucrânia. É a hipótese mais óbvia. Forças especiais infiltraram-se recentemente na Crimeia, sob controle total russo desde 2014, explodindo alvos militares. Em outras regiões ucranianas ocupadas, houve pelo menos dois atentados a bomba contra autoridades locais que passaram colaborar com os russos. Ameaças contra colaboracionistas  têm aparecido nos muros das localidades sob ocupação.

    Se quisessem um alvo “soft”, um nome importante ligado ao regime, mas sem o aparato de segurança de que se cerca as autoridades e os oligarcas, não seria impossível pensar em Alexander Dugin – e era ele quem deveria estar no Toyota destroçado, se não fosse por uma mudança de última hora.

    As atrocidades que Dugin diz sobre os ucranianos nacionalistas poderiam ser usadas como justificativa para um terrível como um atentado contra um civil – “matar e matar e matar”, foi uma delas.

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    O FSB, serviço secreto que substituiu a KGB, já fez até um roteiro: a responsável pelo atentado foi uma integrante do batalhão Azov que se infiltrou na esfera de Daria Dugina, alugando um apartamento no prédio onde ela morava “para obter informações sobre seu modo de vida”.

    Ela é identificada como Natália Pavlovna Vovk, tendo chegado à Rússia “com sua filha de doze anos, em 23 de julho”.

    O serviço russo divulgou até um vídeo mostrando um Mini Cooper cinza, cruzando a fronteira com a Estônia. Nele estaria a assassina. 

    Tempo transcorrido entre a morte de Daria Dugina e a conclusão da FSB sobre os responsáveis: 36 horas.

    Obviamente, um atentado desses exigiria a participação em campo de várias dezenas de agentes e mostraria um nível de mobilização e infiltração que ninguém atribuiria à Ucrânia até agora.

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    Também demonstraria que a FSB e outros organismos de inteligência, com o imenso poder de controle que só é possível em regimes autoritários, falharam miseravelmente em identificar uma ameaça sob suas barbas.

    Vladimir Putin, cujo poder total é firmemente ancorado no controle sobre os organismos de segurança, ficaria mal nessa hipótese. Qualquer sinal de fraqueza num regime de força é interpretado como a antessala da derrocada.

    Note-se que na carta de pêsames que Putin mandou a Dugin, lamentando a perda de “uma pessoa brilhante e talentosa com um verdadeiro coração russo”, não há nenhuma referência aos possíveis responsáveis pelo “crime vil e cruel”.

    2- A segunda hipótese é de que a morte de Daria Dugina resultou de uma operação do tipo “falsa bandeira”. Agentes russos armaram a provocação de forma a justificar mais brutalidade na guerra contra a Ucrânia.

    Note-se que as críticas internas a Putin que chegam à tona são todas acusando-o de “pegar leve” com a Ucrânia. Nacionalistas mais exaltados exigem que alvos como o Ministério da Defesa, o palácio presidencial e o Congresso ucraniano, chamado Verkhovna Rada, sejam explodidos pelos mísseis que a Rússia tem o poder de mandar para qual quer ponto do território ucraniano.

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    Margarita Simonian, diretora de redação da RT e do grupo estatal que controla órgãos como as agências Sputnik e RIA Novosti, resumiu esse sentimento ao tuitar depois do atentado: “Centros de decisão, centros de decisão”.

    A referência, obviamente, é às principais instituições ucranianas – ou talvez até de países vizinhos. O senador Vladimir Dzhabarov, citado pelo New York Times, disse que, se a Estônia não entregasse imediatamente a suposta autora do atentado, “daria todos os motivos para a Federação Russa tomar medidas duras”.

    Corre também a versão de que o próprio Dugin havia criticado Putin a ponto de ter se tornado persona non grata.

    A vantagem da hipótese “bandeira falsa” é que nunca poderia ser comprovada. A desvantagem é que indicaria uma disposição de Putin a sacrificar até seus mais qualificados adoradores. Nem uma única pessoa em posição de poder na Rússia estaria dormindo tranquila desde o atentado que matou Daria Dugina.

    3- Existe ainda a possibilidade de que uma facção insatisfeita desse mundo dos organismos de inteligência tenha resolvido agir por conta própria – algo inimaginável, para um líder como Putin, um ex-agente da KGB, mas a Rússia é um país que sempre desafia imaginações.

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    Esta possibilidade foi cogitada pelo principal propagandista ucraniano, o espertíssimo Mikhailo Podoliak, ao tuitar: “As serpentes dos serviços especiais russos começaram uma briga intraespécies”.

    Nesse mundo complicado de fumaça e espelhos, um truque de magia usado como metáfora para a eterna duplicidade dos serviços de inteligência, também não pode ser descartada a hipótese de uma ação não hierarquizada de agentes ucranianos. 

    No mês passado, Volodymyr Zelensky demitiu não apenas o diretor do SBU, um amigo de infância que havia colocado no comando de um serviço de inteligência que originalmente replicava o modelo da KGB, como trocou o comando de mais 28 cargos de um organismo inflado, com mais de 30 mil integrantes.

    Zelensky, abraçado pela população como um herói nacional, também tem resistências internas, na esfera militar e correlatos, que não admitem nem discutir a possibilidade de um acordo com a Rússia. Seria varrido do mapa se fizesse qualquer coisa parecida com concessões.

    E ainda existe a hipótese de que agentes ucranianos tenham sido manipulados por operadores russos para criar o pretexto de uma radicalização ainda maior de Moscou.

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    Só na Rússia um escritor que não é nada íntimo de Putin – parece que mal se conheceram – poderia estar no centro de um ato brutal como o que matou Daria Dugina e de uma guerra cujas consequências ainda estão se desdobrando.

    Dugin já foi chamado de “profeta fascista” que defende um império euroasiático comandado pela Rússia e comparado a uma espécie de Rasputin de centros de estudos que atraem fanáticos, embora seja difícil enquadrá-lo nos clichês habituais.

    No Brasil, ele atraiu as atenções intelectuais de pessoas como o falecido Olavo de Carvalho e da filósofa Flavia Virginia, inevitavelmente descrita como filha do cantor Djavan. Com ela, escreveu artigos como o que define o Brasil como um exemplo de pluriculturalismo, uma sociedade “onde as culturas se misturam e não é possível seguir um fio condutor de forma fidedigna porque as raízes não estão mais lá – por razões históricas, foram apagadas”.

    Dugin acerta quando diagnostica o desamparo espiritual que o modelo emanado dos Estados Unidos criou em muitas sociedades – e erra em praticamente todo o resto.

    No site Geopolítica, uma de suas recentes contribuições fala extensamente sobre uma partilha da Ucrânia entre Rússia e Polônia. Pleno de certezas, ele garante que “a intensificação do papel da Polônia no conflito agrava o grau da guerra entre Rússia e o Ocidente. Teoricamente, existem duas soluções: concordar em dividir a Ucrânia, tentando tomar para si o máximo possível e permitir que a Polônia aja por conta própria e não em nome da Otan; ou seguir até o fim sob o risco de o confronto chegar ao nível nuclear”.

    “Se não houvesse o risco de guerra nuclear, eu estaria inclinado a apoiar a ideia de tomar o controle de todo o território ucraniano”, concede Dugin.

    Parece loucura, mas é real.

    Sua filha seguia o mesmo modelo de pensamento. Numa de suas últimas entrevistas, exaltou o papel dos países que não tomaram posição contra a Rússia. “Lula da Silva disse que Volodymyr Zelensky é o culpado pela guerra”, afirmou (”Zelensky quis a guerra. Se não quisesse, teria negociado um pouco mais”, foram as palavras literais do candidato na entrevista à revista Time).

    As teorias conspiratórias sobre sua morte, alimentadas por possíveis conspirações reais, não vão parar nunca. Amanhã a guerra completa seis meses e a Ucrânia comemora os 31 anos de sua vida independente – sem gente nas ruas, como advertiu o governo, prevendo que a resposta russa será maligna.

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