Uma candidata a presidente que já parte de uma base de uns 40% dos votos e tem cara de presidente de filme de Hollywood, fora o direito de usar música de Beyoncé nos eventos, é uma força formidável. Mas quais são as principais propostas de Kamala Harris?
Devido ao estonteante ritmo das mudanças nos Estados Unidos e à forma como ela foi escolhida candidata pelo Partido Democrata, menos de 24 horas depois de Joe Biden cair – ou ser caído – fora da disputa, ela não passou pelo tradicional processo de eleições primárias, debates e entrevistas.
Como vice-presidente, falou pouquíssimo. Em várias ocasiões, quando falou espontaneamente, sem o auxílio do teleprompter, atrapalhou-se com as palavras e fez discursos desconexos.
Está brilhando agora, cercada pela adoração da mídia, por um entusiasmo que lembra o despertado por Barack Obama e o alívio de dezenas de milhões de simpatizantes democratas que não sabiam como se livrar de Biden. O “momentum”, como dizem os americanos, é dela e está sabendo aproveitar, embora tenha repetido o mesmo discurso – a promotora durona que vai enquadrar Donald Trump – por dois dias seguidos, enquanto o mundo aguardava sequioso para ouvir suas ideias.
GASTAR, GASTAR, GASTAR
Como foi procuradora-geral da Califórnia (um cargo eletivo), senadora estadual e federal, candidata derrotada por Biden nas primárias de 2020 (Jill Biden não a perdoa por ter sapateado em cima de seu marido num debate dessa época), além de vice-presidente, dá para ter uma ideia de como pensa.
E seu pensamento está alinhado com a ala mais de esquerda do Partido Democrata. Pode ser resumido em duas linhas: gastar muito e dar mais coisas de graça para a população, mesmo no país onde floresceu a ideia de que não existe almoço grátis.
Por exemplo, já defendeu um programa de transição de 100% para a energia verde, segundo um resumo de suas propostas feito pelo site Politico.
Com isso, gastaria mais do que um porta-aviões inteirinho cheio de marinheiros bêbados no porto: 10 trilhões de dólares, mais de três vezes o PIB do Brasil. Seria, obviamente, um programa em fases, mas mesmo assim é de cair o queixo e causaria um endividamento potencialmente danoso para um país que já tem uma dívida de 35 trilhões.
FURAR, FURAR, FURAR
Ela também é contra o fracking, ou a extração através de poderosíssimos jatos d’água das reservas de gás de xisto – um dos recursos que fazem a prodigiosa riqueza energética dos Estados Unidos, mas tem enormes restrições ecológicas.
Donald Trump, obviamente, é o principal defensor do lema “Drill, baby, drill”. Ou seja, furar para tirar petróleo e gás de onde seja necessário para solidificar os Estados Unidos como a maior potência energética do mundo.
É claro que essas riquezas também têm um enorme peso geopolítico, considerando-se que rivais como a Rússia, basicamente “um posto de gasolina com bombar nucleares” cujos recursos estão sendo usados para bancar a isolamento no mundo ocidental por causa da guerra contra a Ucrânia, e a China, com suas dificuldades em suprir o gigantesco consumo doméstico e industrial.
Existe também um componente eleitoral: tanto Kamala quanto Trump precisam dos votos da Pensilvânia, onde o fracking é uma indústria importante.
PENSAMENTO WOKE
Por que Kamala não vê a necessidade superior da exploração de recursos energéticos para fortalecer a economia interna e enfrentar potências ascendentes que desafiam os Estados Unidos? O Brasil, por exemplo, tem um governo de esquerda que apoia a exploração de petróleo em regiões intocadas da Amazônia.
Nem é preciso dizer que o silêncio dos ecologistas locais é ensurdecedor. No caso dos Estados Unidos, fazem um barulho danado e Kamala é plenamente alinhada com o pensamento woke.
Como senadora, Kamala chegou a votar, por motivos ecológicos, contra a Parceria Trans-Pacífico, o principal projeto geoestratégico do presidente Obama (e, segundo uma fonte do New York Post, Obama, um dos articuladores da desistência de Joe Biden, não põe muita fé que ela possa ganhar a eleição presidencial).
Apoiou até a proibição, na Califórnia, do foie gras, o delicioso fígado de gansos alimentados discutivelmente para ficar com bastante gordura.
Outros exemplos de wokismo: defende legislação de proteção ao aborto a nível federal (a Suprema Corte devolveu o poder de decisão aos estados e os mais conservadores instituíram barreiras) e quer o cancelamento das dívidas assumidas por estudantes para bancar as caríssimas universidades americanas. Aliás, propõe universidades gratuitas em grande escala, cobertura universal de saúde, reembolsos fiscais para quem paga aluguel equivalente a mais de 30% do salário e proibição de “armas de assalto”, fuzis automáticos ou semi.
Enfim, um sonho progressista sem vasos conectantes com a realidade.
UNIVERSO ESQUERDISTA
Sobre a espinhosíssima questão do Oriente Médio, aguçada pelo discurso de ontem do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu no Congresso, com duplos protestos, pró-Hamas, inclusive um defendendo a “solução final para os sionistas”, e de familiares de reféns israelenses, também se alinha mais à esquerda, o que no mundo de hoje significa ficar contra Israel.
O marido dela é o advogado judeu Douglas Emhoff, que saiu de seu escritório especializado em direitos de imagem e outras áreas ligados ao mundo do show business, quando a mulher foi candidata a vice-presidente.
Para compensá-lo, Joe Biden mobilizou-o para campanhas de combate ao antissemitismo. Emhoff disse que ficou mais próximo de temas judaicos por causa disso. Também visitou Auschwitz pela primeira vez e foi conhecer a cidadezinha na Polônia de onde seus antepassados vieram. “Eu me aproximei da fé. Meus olhos se abriram para muitas coisas”, disse sobre a experiência.
É uma posição interessante no universo esquerdista de muitos judeus americanos. Kamala muito provavelmente será mais sensível a uma visão menos esquemática de Israel por causa da proximidade com o marido.
SISTEMA FALIDO
Ficaremos sabendo mais proximamente: Kamala não terá como evitar entrevistas e debates, inclusive sobre o tema da imigração, um dos mais importantes para os americanos. Embora tenha recebido de Biden a missão de enfrentar a questão a fundo, Kamala fez exatamente zero.
Sua súbita ascensão alimentou um aumento nas preferências do eleitorado, mas na média das treze pesquisas do RealClearPolitics está dando 47,5% para Trump e 45,9% para ela. As duas pesquisas em que está na frente são da Reuters/Ipsos (44% a 422%) e da ABC News/Washington Post (49% contra 47%).
São resultados, obviamente, apertadíssimos, ainda mais no ambiente de alta imprevisibilidade que se instalou nos Estados Unidos. No momento, nada está garantido para nenhum dos dois candidatos.
“A maioria dos eleitores diz que está profundamente insatisfeita com o estado do país”, escreveu o analista Nate Cohn no New York Times. “Dizem que o sistema econômico e político está falido e querem mudanças”.
CANDIDATA DA MUDANÇA
Cohn argumenta que Trump era o candidato da mudança e Biden, o do status quo. Como se colocará Kamala nesse campo? Conseguirá convencer os eleitores a desvincular seu nome do atual e alquebrado presidente? Como fará para administrar os seis meses que faltam para um presidente zumbi, cujo discurso ontem foi solenemente ignorado, ir embora?
É nessas horas que explodem as crises e Kamala continua a ser, oficialmente, a vice-presidente.
Sua imagem, por si só – mulher, negra, indiana etc etc – aponta para a mudança e pode atrair um eleitorado que, parcialmente, se aproximava de Trump – inclusive jovens e negros. E isso sem alienar ainda mais os homens brancos sem ensino superior que fazem a força do ex-presidente. Tem que falar aos indecisos ou cooptáveis, não a quem já vai votar nela de qualquer maneira.
Tem também que articular muito claramente o que propõe para o país e passar pelo escrutínio a que todos os candidatos de países democráticos se submetem.
Uma coisa já conseguiu: ajudada pela demissão da diretora do Serviço Secreto que tantos erros cometeu, ela eliminou do foco central o atentado contra Trump. E isso que foi há apenas doze dias, embora pareçam doze meses.