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O incrível destino do juiz que inspirou Moro e de seus algozes

Falcone dava como certo que seria assassinado, mas vivia com uma ideia lúcida: não fazer concessão ao medo nem se impressionar com o poder da máfia

Por Vilma Gryzinski Atualizado em 5 nov 2018, 13h57 - Publicado em 5 nov 2018, 13h55
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  • “Quem silencia e abaixa a cabeça, morre cada vez que faz isso; quem fala e anda com a cabeça erguida, morre uma vez só”.

    Giovanni Falcone morreu uma vez só e o estrondo é ouvido até hoje. Não apenas dos 400 quilos de TNT enterrados debaixo do asfalto da estrada para o aeroporto de Palermo  uma carga tão violenta que foi registrada no sismógrafo do Instituto de Geofísica e Vulcanologia das imediações, faltando menos de quatro minutos para a seis horas da tarde de 23 de maio de 1992.

    Como o mais conhecido dos muitos “cadaveri eccelenti”, ou cadáveres ilustres, como os mafiosos chamavam suas vítimas famosas, o barulho deixado por Falconi foi mencionado em diversas ocasiões por Sergio Moro, a última delas referindo-se ao processo de decisão de deixar a magistratura  e a Lava Jato  para ser ministro da Justiça.

    E 2015, disse Moro: “Nos momentos de dificuldade, leio livros sobre Giovanni Falcone e vejo que os casos nos quais ele atuava eram muito mais profundos do que o meu”.

    Falcone estabeleceu parâmetros de investigação que hoje parecem ter existido desde sempre: seguir o caminho do dinheiro, interligar as operações criminosas, estabelecer o domínio dos fatos e implantar um sistema de delação premiada que conseguiu, pela primeira vez, quebrar a lei do silêncio, um pacto que remonta à idade média e era garantido com o sangue da família inteira dos que aderiam a ele.

    O mais famoso colaborador, o que abriu os portões, tinha um nome impronunciável publicamente no Brasil: Tommaso Buscetta. Rompido com os chefões sicilianos, ele tinha “operado” nos Estados Unidos e no Brasil. Falcone veio negociar pessoalmente a extradição dele.

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    Reza a lenda que o juiz italiano perguntou por que ele tinha acabado preso em São Paulo e Buscetta respondeu: “Doutor, no Brasil nem a máfia funciona”.

    Foram as informações de Don Masino, como era chamado, que permitiram estabelecer, judicialmente, a responsabilidade dos chefões, os homens da Cúpula  tudo é em maiúsculas quando envolve a Cosa Nostra  pelos crimes nos quais, evidentemente, não sujavam as mãos.

    “BEIJO DE HONRA”

    Os paralelos com os casos de corrupção no Brasil são evidentes. Na Itália, quase concomitantemente ao máxi-processo, envolvendo os mafiosos de Palermo, ocorreu a operação Mãos Limpas.

    O juiz mais conhecido da Mãos Limpas foi Antonio di Pietro. O alcance foi tal que mais da metade dos parlamentares tinham sido indiciados. Ao todo, o caso envolveu mais de 5 000 pessoas, entre políticos, empresários e funcionários públicos.

    Os processos conduzidos por Giovanni Falcone acabaram, inevitavelmente, envolvendo políticos. Como funcionaria a Cosa Nostra sem as melhores conexões que o dinheiro pode comprar?

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    Giulio Andreotti, o patriarca da política italiana, chegou a ser acusado de ter trocado o “beijo de honra” com Totò Riina, o chefão dos chefões, segundo testemunho do próprio motorista do mafioso.

    O processo na justiça deu em nada, com a conclusão que as relações de cooperação haviam sido rompidas desde o assassinato, em 1980, do ilustríssimo cadáver Piersanti Mattarella, líder democrata-cristão que denunciava os acordos espúrios com os mafiosos (o atual presidente italiano, Sergio Mattarella, é irmão dele).

    Riina deu a ordem de matar Giovanni Falcone. A ascensão do chefão de Corleone  exatamente a mesma cidadezinha do livro de Mario Puzzo e da série de filmes de Francis Coppola  e a brutalidade de seus métodos correspondem mais ou menos às de Pablo Escobar e da explosão de consumo de cocaína.

    O chefão estava preso, depois de passar 23 anos “foragido”  na sua casa em Palermo, com a mulher e os quatro filhos, debaixo do nariz das autoridades que fingiam nada ver.

    O executor, ou killer, como dizem os italianos, foi Giovanni Brusca. Quando foi preso, quatro anos depois do assassinato de Falcone, exibia na ficha “entre 100 e 200” mortes  tinha perdido a conta.

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    Conhecido como Porco, ele havia rompido hediondamente a tradição mafiosa de não matar mulheres e crianças. Sequestrou o filho de onze anos de um dos “arrependidos” e manteve o menino em diversos cárceres durante meses, mandando fotos ao pai da criança torturada. Depois, mandou estrangular e dissolver o corpo do menino num barril de soda cáustica.

    A prisão de Brusca foi comemorada por policiais de Palermo que chegaram a chorar de alegria, arrancando do rosto as balaclavas usadas para a própria proteção.

    Já podiam andar de cabeça erguida, como aconselhava Falcone.

    BELLA FIGURA

    Dos principais envolvidos, Brusca é o único que continua vivo, com a colaboração premiada e o bom comportamento recompensados por saídas para visitar a família.

    Totò Riina morreu no ano passado, aos 87 anos, na cadeia onde estava desde 1983. Tommaso Buscetta entrou num programa de proteção a testemunhas nos Estados Unidos, com nova identidade e novo rosto, com outra operação plástica. Morreu lá, de câncer de pulmão, no ano 2000.

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    Sobreviveu a mais de 20 parentes mortos nas guerras internas da Cosa Nostra. E, obviamente, a Falcone, a quem conheceu quando estava preso no Brasil e avisou: “Primeiro, eles vão tentar me pegar. Depois, vai ser você.”

    No primeiro encontro com o juiz, Don Masino vestia blazer branco com abotoamento duplo, calça preta, camisa azul marinho e gravata. Queria, evidentemente, fazer uma “bella figura”, como dizem os italianos. Manter as aparências.

    Mais de 300 mafiosos foram presos e condenados devido ao tsunami de confissões iniciado por ele e ao trabalho pioneiro de Giovanni Falcone.

    Como Pablo Escobar, Totò Riina chegou a ameaçar as estruturas do Estado italiano, com atentados a bomba que imitavam os métodos dos grupos de extrema-esquerda e extrema-direita. Mirava no coração da identidade italiana: igrejas e ambientes de exibição de arte.

    Falcone morreu ao lado da mulher, Francesca Morvillo. Ele próprio dirigia o Fiat Croma branco. Morreram também três seguranças. Os carros retorcidos acabaram virando peças de museu contra a infâmia.

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    Menos de dois meses depois, um carro-bomba explodiu na frente da casa de Paolo Borsellino, colega de Falcone que denunciava elos entre mafiosos e políticos. Morreram o juiz e cinco policiais.

    Os assassinatos propiciaram o regime de incomunicabilidade chamado 14BIS, uma referência ao artigo do regimento carcerário que o propiciou. O poder da máfia siciliana diminuiu consideravelmente, mas é claro que não desapareceu. Muitos especialistas consideram que a máfia napolitana ocupou os espaços vazios.

    Mas mandar matar Falcone não foi definitivamente uma boa ideia para a cúpula da Cosa Nostra. E provou, mais uma vez, que criminosos considerados intocáveis prejudicam seus próprios interesses, embriagados pela ideia de que podem tudo.

    Até encontrarem um falcão pela frente.

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