“As comemorações vão começar”. A mensagem na rede social chinesa mais frequentada, com 150 mil curtidas em uma hora, resumiu sentimentos profundamente entranhados nos países asiáticos onde o Japão imperialista cometeu crimes inomináveis desde o começo do século XX até ser derrotado pelos Estados Unidos em 1945.
Oficialmente, a China não quer que o assassinato de Shinzo Abe seja “comemorado” como uma revanche por esses crimes – às vezes, a fúria contra o Japão explode mesmo sem incentivos vindos de cima.
Em muitos países asiáticos, onde o Japão matou um número calculado entre 3 milhões e 14 milhões de civis, o passado não passou e permanecem em carne viva ressentimentos contra políticos como Abe, associado à ala militarista do Partido Liberal Democrata.
Abe deixou o governo em setembro de 2020, debilitado por uma forma incapacitante de síndrome de intestino irritável, mas até depois de largar o poder continuou o ato que é associado à falta de arrependimento pelos crimes cometidos em nome do imperador: a visita ao templo de Yasukuni. Nele estão registrados os nomes de quase 2,5 milhões de pessoas, além de alguns animais de estimação, que morreram a serviço do país.
Entre elas, 1 068 criminosos de guerra, incluindo Hideki Tojo, ministro da Guerra e primeiro-ministro entre 1940 e 1944. Portanto, o principal responsável pelos atos genocidas cometidos na China e na Coreia, para ficar nas piores atrocidades, incluindo não apenas o extermínio da população civil nos territórios chineses anexados e o bárbaro abuso de pelo menos 200 mil coreanas como escravas sexuais em bordéis montados para os soldados japoneses.
Ao saber que os ocupantes americanos haviam dado a ordem para sua prisão, Tojo tentou se suicidar, atirando na marca feita por um médico com carvão em seu peito, para acertar no coração. Errou – uma vergonha pelos padrões japoneses. Acabou no grupo dos seis piores criminosos de guerra enforcados depois de um julgamento em que o promotor americano Joseph Keenan pretendeu despojá-los do “glamour de heróis nacionais e expô-los pelo que foram: assassinos comuns”.
Foi enterrado em Yasukuni.
Daí porque as visitas de políticos japoneses são sempre vistas como uma tentativa indireta de homenagear homens como Hideki Tojo, algo que seria impensável na Alemanha, profundamente desnazificada, tanto pela brutalidade dos ocupantes soviéticos quanto pelo pragmatismo de resultados dos americanos.
No Japão, o processo foi diferente. O prodigioso general Douglas MacArthur não deixou dúvidas aos japoneses de fraque e cartola que tentaram amenizar as condições da rendição com uma frase histórica: “As questões envolvendo diferentes ideais e ideologias foram resolvidas nos campos de batalha do mundo e, portanto, não estão abertas a discussão ou debate”.
Mas também fez concessões quase inimagináveis. A principal delas: permitir a permanência do imperador Hiroíto, em nome de quem todos os atores dos eventos japoneses haviam feito o que fizeram.
O Japão já estava brutalmente vencido, antes mesmo das duas bombas atômicas que selaram a rendição, prevenindo, a um preço terrível, que a resistência autodestrutiva continuasse, a um custo calculado em 10 milhões de baixas entre os japoneses e 1,7 milhão entre os americanos.
Manter o imperador garantiu uma transição rápida para o programa de MacArthur: desmilitarizar o Japão, implantar um regime democrático e promover a reconstrução nacional.
Em dez dias, a equipe de especialistas em língua e cultura japonesa levada por MacArthur escreveu a constituição, sob o comando do tenente-coronel Charles Kades, um advogado do estado de Nova York. A jovem americana Beate Sirota, originalmente judia ucraniana, de apenas 22 anos, convocada pelo pleno domínio sobre a língua japonesa que aprendeu quando criança, morando no país, influenciou a cláusula estabelecendo a igualdade entre homens e mulheres, numa época em que elas andavam 1,80 metro atrás deles.
A nova constituição consagrou a desmilitarização do país a tal ponto que até hoje o Japão não tem forças armadas, mas forças de autodefesa, mesmo tendo se tornado um dos maiores aliados dos Estados Unidos e enfrente agora duas ameaças avassaladoras: a ascensão da China, com seu projeto de “engolir” o Pacífico inteiro, e a nuclearização da Coreia do Norte.
Não é apenas uma diferença semântica. Um dos objetivos de Shinzo Abe quando foi primeiro-ministro era justamente mexer nos artigos constitucionais referentes ao pacifismo institucional, superado pelas novas realidades geopolíticas. Não conseguiu. A ala “militarista”, que utiliza como um de seus instrumentos a religião shintoísta e seu culto aos ancestrais – daí a importância redobrada do templo de Yasukani – vive em tensão permanente com os “pacifistas”.
Shinzo Abe foi um razoável primeiro-ministro para o Japão, um país sem recursos naturais que tem um PIB de 5 bilhões de dólares – a terceira maior economia do mundo, um lugar que ocupa quase silenciosamente, sem um peso político compatível com a posição material. Combateu a “doença japonesa”, o crescimento anêmico ou estagnado, e originou até um neologismo, a “abeconomia”, uma política combinando estímulos fiscais, reformas estruturais e uma certa liberalidade fiscal (nada, nem de longe parecido, com as farras tropicais).
Todo assassinato político tem um aspecto especialmente chocante pelo trauma que representa para a psique nacional – e mais ainda num país como o Japão, onde reinam a veneração pela autoridade e a posição hierárquica dos superiores.
Matar um “senpai” como um ex-primeiro-ministro é atentar contra a base de um sistema de valores construído ao longo de milênios de uma história complexa na qual o período militarista da primeira metade do século XX foi um capítulo especialmente brutal que ainda está sendo assimilado.