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O agente secreto russo que comprou a morte de americanos

Cabeças a prêmio: inimigos de ontem viraram aliados de hoje e espiões da Rússia pagaram o Talibã por ações militares mortíferas contra os Estados Unidos

Por Vilma Gryzinski 30 jun 2020, 07h51
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  • Os serviços secretos russos têm uma longa tradição de eficiência e manipulação, mas a trama revelada esta semana é de impressionar até os mais calejados nas histórias do mundo das sombras.

    Os mesmos agentes da Unidade 29155 do GRU, o serviço secreto militar, que fracassaram escandalosamente na tentativa de matar um ex-espião russo com um elemento de guerra biológica fizeram uma aliança infernal no Afeganistão.

    Ofereceram ao Talibã, o movimento ultrafundamentalista que nasceu justamente na época da ocupação russa do Afeganistão, recompensas pela morte de militares americanos.

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    Resumo a jato da história recente:

    O Afeganistão é um país que conseguiu ser invadido pelas duas maiores potências nucleares do mundo.

    Em 1979, na época da União Soviética, as tropas foram enviadas para tentar salvar um governo comunista  – e golpista – alinhado com Moscou.

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    Fracassaram miseravelmente. A resistência mobilizou, em boa parte, adeptos do islamismo radical que deu origem ao Talibã.

    No apagar das luzes da URSS, em 1989, os russos bateram em retirada. A guerra interna continuou até a exaustão total, quando o Talibã tomou o poder, em 1996.

    Baseados nos fundamentos literais do Islã tal como entendidos há mais de 1.500 anos, estenderam-se sobre o país barbaridades como decapitações em estádios de futebol e lapidação de adúlteras.

    Em 11 de setembro de 2001, quatro aviões sequestrados por fundamentalista doutrinados por um líder saudita abrigado no Afeganistão desfecharam os atentados terroristas que mataram quase 3.000 pessoas.

    Os Estados Unidos exigiram o impossível, que os talibãs entregassem Osama Bin Laden. Em menos de um mês, foi desfechada a invasão militar.

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    Ao contrário dos filmes, o final foi indecisão. O Talibã caiu rapidamente, mas sua base tribal orgânica, ancorada na etnia Pashtun, não só sobreviveu como agora, depois de 2.700 militares americanos mortos, negocia um acordo para o fim da intervenção – uma promessa de campanha de Donald Trump.

    A saída das tropas remanescentes seria uma espécie de doce revanche para os russos, zerando a humilhação de sua própria retirada.

    Por que, então, a aliança secreta com o Talibã que fixou um preço por militar morto, segundo revelaram fontes de inteligência ao New York Times?

    Possivelmente como um gesto de desafio, um “que se danem” para os países ocidentais que retaliaram depois do atentado fracassado de 2018.

    O alvo foi Sergei Skripal, ex-agente duplo condenado na Rússia e libertado numa troca de espiões. 

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    Por acaso, sua filha Yulia estava visitando o pai na pequena cidade de Salisbury, conhecida pela catedral gótica.

    Os dois foram envenenados com uma dose que deveria ser letal de Novichok, um agente biológico devastador.

    Incrivelmente, conseguiram sobreviver. 

    A única vítima fatal foi uma mulher, inglesa, que achou um “perfume” no lixo de um parque na vizinha Amesbury e passou nos pulsos, num gesto habitual.

    Os dois agentes russos usaram identidades falsas, mas deixaram um enorme rasto de pistas de todos os tipos, principalmente nas câmeras de segurança.

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    Com um pouco de paciência e muita persistência no uso de informações públicas, o site russo Bellingcat identificou os dois assassinos trapalhões: Anatoly Chepiga, coronel do GRU, e o médico Alexander Mishkin, possivelmente destacado para ajudar na manipulação do perigosíssimo Novichok ou em caso de auto-envenenamento.

    Os dois também participaram de um atentado com agente químico contra um comerciante de armas na Bulgária.

    Ou seja, têm uma ficha de fracassos, o que não costuma ser premiado com condecorações, como fez Vladimir Putin com Chepiga depois do escândalo de Salisbury.

    Assim, não é possível dizer, no momento, se a missão mortífera de Chepiga no Afeganistão foi um prêmio ou um castigo.

    Os Estados Unidos reduziram sua presença a apenas mil militares ainda em ação no Afeganistão. Nos últimos dois anos, sofreram vinte baixas.

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    Entre elas, três fuzileiros navais mortos na explosão de um carro-bomba em abril do ano passado.

    Este caso se incluiria no prêmio em dinheiro prometido pelo serviço secreto russo a talibãs ou clãs especializados em sequestros e outros crimes.

    Por que o caso foi “vazado” agora para o New York Times?

    Obviamente, para constranger Donald Trump.

    Em fase de maré baixa, o presidente disse que nunca soube da trama, à qual os Estados Unidos teriam que responder à altura.

    Foi imediatamente contestado pelas “fontes”. A informação, disseram ao Times, o jornal preferido pela CIA para plantar notícias, constava do relatório diário de inteligência levado ao presidente.

    Foi apresentada em  27 de fevereiro.

    O que quer que Trump faça a respeito será, inevitavelmente, considerado pouco, errado ou suspeito.

    O objetivo é aumentar a aura de conspirador associado à Rússia, mesmo que todas as investigações tenham desmentido isso.

    Os desmentidos, obviamente, não eliminam o fato de que os serviços russos fazem de tudo para enfraquecer os Estados Unidos, incluindo exércitos de robôs em operações de contrainformação.

    Depois que os serviços secretos foram reestruturados, com o desmembramento da antiga KGB, o GRU assumiu também as operações de guerra cibernética. 

    Vladimir Putin sabia da possibilidade de constranger Trump com uma operação secreta tão explosiva quanto pagar pela morte de militares americanos?

    Sem dúvida. Como ex-agente da KGB, ele sabe de tudo, inclusive as implicações do “tudo” que sabe.

    Aparentemente, tem uma confiança fora do comum em Anatoly Vladimirovich Chepiga, o coronel do serviço secreto que atuou na guerra da Chechênia.

    Chepiga inclusive usava uma identidade falsa com um nome checheno, Ruslan Bochirov.

    Ele foi também o chefe de segurança do presidente ucraniano Viktor Yanukovitch, um posto nada menos que explosivo.

    Yanukovich mudou de lado – ou assumiu a “mudança” – quando era presidente, aliando-se a Putin. Provocou assim a rebelião popular que acabou por obrigá-lo a fugir da Ucrânia. Nem é preciso dizer que vive hoje na Rússia.

    Em 2014, Chepiga ganhou a medalha de Herói da Federação Russa pelos serviços prestados na Ucrânia. Talvez um dia esses serviços sejam revelados – e não vai ser nada bonito.

    Num ano eleitoral, com a real possibilidade de que Joe Biden defenestre Trump, o Partido Democrata está procurando explorar ao máximo o caso.

    O Afeganistão já foi famosamente chamado de “cemitério de impérios” por ser incontrolável, com o terreno montanhoso, o emaranhado de laços tribais e, nas décadas recentes, a radicalização islamista, tornando-o intransponível a invasores estrangeiros.

    A oposição a Trump quer desvalorizar, com o caso das cabeças americanas a prêmio, justamente um dos trunfos do presidente: o encerramento da intervenção militar no Afeganistão.

    Mais uma vez, apareceram russos no caminho de Trump, agora sob a forma de um agente que cometeu muitos erros, mas continuou desfrutando da confiança de Putin.

    Por quê?

    “É uma charada envolta num mistério dentro de um enigma”, disse certa vez Winston Churchill sobre o comportamento da União Soviética.

    Com todas as mudanças políticas, a definição continua valendo.

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