Um louco vingativo? Um psicopata das antiguidades? Um “assassino” em série de tesouros?
Todas as possibilidades estão abertas no estranho caso que consome atualmente um dos grandes museus universais, daqueles que contam a história do mundo: o desaparecimento de “até 2 000” artefatos, alguns remontando a 3 500 anos, segundo uma fonte revelou ao Telegraph — a direção do museu só entrega informações a conta-gotas.
“Acredita-se que os objetos foram roubados ou destruídos por um único ladrão que passou despercebido durante anos”, anotou o jornal.
Mais estranho ainda: qual a motivação? Alguns artefatos, como um camafeu de ouro e ônix da época de Roma antiga, foram colocados a leilão no eBay. Avaliado por uma quantia que vai de 25 mil a 50 mil libras, o camafeu era oferecido a 40 libras. Ninguém comprou. Mas chamou atenção suficiente para que um especialista avisasse o museu sobre a procedência de vários artefatos colocados à venda. Isso foi há três anos. Só agora o museu começou a falar sobre o assunto, informando que os objetos eram majoritariamente joias de ouro com pedras semipreciosas ou artefatos de vidro, datados desde 1 500 AC até o século XIX.
Como parece evidente, pelos preços no eBay, que o objetivo não era lucrar com os objetos surrupiados, qual seria o motivo do crime? Provar a vulnerabilidade do museu? Desmoralizar sua direção? Vingar alguma desfeita por enquanto desconhecida?
O suspeito maior é Peter Higgs, o especialista em culturas mediterrâneas que trabalhou trinta anos no British e foi demitido em julho — ainda sem nenhuma explicação pública sobre o motivo, o que não impede as especulações de que a origem da joia romana colocada no eBay foi traçada até ele.
O marchand dinamarquês Ittai Gradel, que identificou a preciosidade no site de leilões e no catálogo do British em 2020, acha que o museu está abafando o caso para não ficar numa posição delicada, em especial num momento em que estão sendo reavivadas as reivindicações pela devolução de alguns dos maiores tesouros do British, como os blocos de esculturas do Partenon.
Desde 2021, o museu é presidido por George Osborne, ex-ministro da Fazenda do governo de David Cameron, e ex-diretor de redação do Evening Standard, aquele jornal que todo mundo recebe na saída do metrô. Osborne é de família nobre e seu legado como ministro é contestado não apenas à esquerda como também à direita. Ter usado o jornal popular para acertar contas com desafetos também não o faz um sujeito muito querido.
Foi Osborne quem anunciou um acordo com a Grécia para devolver as fabulosas esculturas, num esquema de guarda compartilhada do qual não se falou muito depois, provavelmente por causa da forte reação que provocou. O revisionismo histórico — e muitas vezes histérico — que domina a Inglaterra ainda não chegou ao ponto de acabar com as resistências à devolução das peças mais famosas do museu. O Telegraph disse que a investigação sobre os artefatos desaparecidos só avançou por causa do ex-ministro.
A história colonial que transformou o British numa espécie de retrato da extensão — e também do pioneirismo cultural — foi complicada? Sem dúvida nenhuma. Mas muitas das preciosidades abrigadas no museu provavelmente só sobreviveram porque estavam no coração de Londres e não em lugares onde eram ignoradas ou até rejeitadas. Os próprios mármores do Partenon eram desvalorizados pelo império que dominava a Grécia na época em que foram comprados por lorde Elgin, o otomano.
E a história chega até nossos dias. Os espetaculares monumentos da Babilônia e outras culturas da Mesopotâmia estiveram a salvo do alcance do Estado Islâmico durante o terrível período em que os fundamentalistas tomaram uma parte da Síria e do Iraque, fundando um “califado”, em 2014. Com sua ideologia alucinada, eram a favor da destruição de tudo que tivesse vindo antes da religião muçulmana. Antes dele, o primeiro governo do talibã no Afeganistão mandou dinamitar os Budas gigantes de Bamian, fabulosas esculturas feitas numa montanha rochosa. O atentado ao patrimônio cultural foi uma espécie de antecessor ideológico dos atentados terroristas de Onze de Setembro.
Isso não significa que um iraquiano, um grego ou um egípcio não se ressintam das obras formidáveis que foram tiradas de seus países na época em que o próprio conceito de arqueologia estava florescendo no coração do império britânico. Pioneiramente, o British foi criado por uma lei datada de 1753 para abrigar os objetos artísticos e livros de três grandes colecionadores.
Hoje, é impensável — e ilegal — que tesouros nacionais sejam removidos como aconteceu até meados do século XX. O “ladrão serial” de artefatos do British abala até os fundamentos do conceito de que o museu é o guardião confiável de múltiplos patrimônios abertos à visitação de todos os que conhecem Londres – e, ainda por cima, gratuito, uma alegria para turistas de orçamento curto.
A experiência de entrar pela primeira vez no prédio em estilo grego e ver praticamente a história da humanidade diante de seus olhos, como só dois grandes “rivais” fazem, o Louvre e o Metropolitan, é insubstituível.
A ideia de que um dos guardiães desses tesouros possa estar envolvido no roubo de artefatos e ser um desequilibrado, buscando provar alguma coisa que ainda não sabemos o quê é, tem uma natureza perturbadora. A plena extensão do que aconteceu no British — e onde estão os artefatos desviados — ainda está por ser reveladas. Mas já sabemos que dará um filme daqueles.
Ittai Gradel, o marchand que identificou a peça desviada e seguiu a pista sobre sua origem, acha que o culpado é Peter Higgs. Ou alguém se passando por ele. O roteiro vai ganhando assim novas e irresistíveis guinadas.