Tudo ou nada, parece ser o recado do pacotaço de 366 medidas de emergência que, na definição de Eduardo van der Kooy, do Clarín, propõe “uma mudança do sistema econômico que é também uma mudança cultural”.
É possível dizer muita coisa sobre Milei, e provavelmente tudo já foi dito diante de seus hábitos excêntricos e extravagantes ideias ultraliberais. Falta saber apenas se ele acredita que pode realmente promover mudanças dessa magnitude por decreto ou apenas lançou o superpacote como uma espécie de manifesto, uma declaração de intenções a ser submetida ao teste de realidade.
“É a tentativa de mudança mais profunda do sistema econômico que o país conheceu em mais de cinquenta anos”, resumiu Van der Kooy. O ambicioso, quase visionário – insano, dizem os inimigos – arco abrange todos os vespeiros imagináveis, de clubes de futebol aos sindicatos profundamente aninhados no tecido social argentino, de farmácias à flexibilização das leis trabalhistas, de contratos de aluguel a simplesmente a própria natureza dos contratos, vistos sob o foco libertário.
A resistência vem não apenas do peronismo, em seus múltiplos braços, como dos partidos até ontem oposicionistas e dos quais Milei depende para fazer as coisas funcionar no Congresso, onde seu A Liberdade Avança tem apenas 37 deputados. As perspectivas não são animadoras: a frente Juntos Pela Mudança rachou depois que o ex-presidente Mauricio Macri anunciou apoio a Milei e muitos de seus remanescentes não aceitam mudanças tão extremas como as que constam do portentoso Decreto de Necessidade e Urgência (DNU), feitas sem o apoio do Congresso, como estabelece o sistema de equilíbrio entre poderes.
“Estamos de acordo com 90% das coisas que propõem. Se mandasse projetos de lei, a maioria seria aprovada”, disse ao Infobae uma fonte do novo bloco parlamentar que saiu desse racha, chamado Mudança Federal e liderado por Miguel Ángel Pichetto. “Primeiro, há muitos pontos que vão ser judicializados e podem ser revogados na Justiça. Segundo, abrimos o precedente para que o próximo presidente também inicie seu governo com um mega DNU que anule tudo o que Milei fez.”
“SEM GRADUALISMO”
Este é um dos mais consideráveis argumentos contra o pacotaço. Países em que se governa por decreto deixam de ter previsibilidade e segurança jurídica, prejudicando justamente os investimentos necessários para uma guinada econômica como a sonhada por Milei, com uma economia desregulamentada que propulsionaria o pulo do gato para transformar a Argentina num país ágil, moderno e apto à benfazeja exploração de seus múltiplos recursos naturais.
O novo governo já disse que não pretende retirar o pacotão e transformá-lo em projetos de lei, como fez Mauricio Macri ao esbarrar na resistência legislativa e nos obstáculos na Justiça a uma saraivada de decretos quando era presidente.
Apesar do bom relacionamento entre Milei e Macri, e da importância dos votos reencaminhados a ele no segundo turno, o novo presidente não quer saber da abordagem de reformas comedidas. “Sem gradualismo” foi um de seus gritos de guerra. Com boa dose de razão: os que criticam Macri pela direita dizem que ele contemporizou demais e, quando viu, já estava acossado pela crise, obrigado a pedir o empréstimo de emergência do FMI que mantém a Argentina pendurada numa dívida que não tem como pagar e com uma inflação que hoje parece até gentil – 40% na época, indo para 200% agora.
MESMO ERRO
Inflação desse nível não é assunto urgente? Cofres vazios? Ajuste fiscal que cria situações desesperadoras para todos e, acima de tudo, os mais pobres?
“Parece que muitos argentinos preferem tentar algo desconhecido depois de tanta insistência no mesmo erro”, especulou Joaquín Morales Solá no La Nacion. Mas lembrando que “atrás de cada regulamentação sempre existe um interesse, seja de políticos, de dirigentes sindicais ou de setores empresariais”.
Dá para desafiar tanta gente ao mesmo tempo? Milei fez um pequeno teste na semana passada, quando apostou alto para impedir que uma marcha de piqueteiros, o conglomerado de esquerdistas e peronistas que se consideram os reis do povo, parasse o trânsito no coração de Buenos Aires, como havia se tornado hábito.
Apenas 10% dos 50 mil manifestantes esperados pelos organizadores deram as caras, talvez intimidados pela ameaça de corte de programas sociais para quem bloqueasse ruas. Também deu impressionantemente certo uma iniciativa até ingênua, como criar uma linha telefônica para denúncias de beneficiados por programas sociais como o salário desemprego que se sentissem chantageados pelos dirigentes a participar do protesto. Num mar de denúncias, duas mulheres disseram que eram obrigadas a trabalhar como domésticas para uma vereadora, sob ameaça de perder benefícios.
FECHA TUDO
Parece pouco, mas soa como o início de uma mudança cultural.
Outra: Milei agora usa o programa da veteraníssima apresentadora Mirtha Legrand, que tem um formato de almoço com famosos, como uma espécie de coletiva com uma pessoa só (lembrando que foi lá que conheceu a namorada, a humorista Fátima Flórez).
Disse ele no último “almoço”: “Todas as empresas do Estado são deficitárias. Por que tenho que sustentar a TV pública, pagando salários estrambóticos, quando existem crianças passando fome? O Estado não tem por que participar da economia”.
“É preciso fechar todas as empresas do Estado.”
Imaginem o tamanho das resistências que está encontrando.
Curiosamente, a opinião pública, em proporção bem maior do que os 53% que votaram em Milei, apoia o superpacote de decretos: foram impressionantes 71,3% a favor, segundo uma pesquisa DC Consultores. Outro dado interessante: 53,5% foram a favor das medidas que restringiram os protestos dos piqueteiros e 23% esperam que sejam mantidas.
Tudo, obviamente, pode mudar bem depressa. Os preços estão subindo dolorosamente e o aumento das tarifas começa agora em janeiro. Milei vai precisar de todas as forças do céu, como diz em seus paralelos bíblicos. E da terra também.