Grave fratura: manifestantes ingleses e muçulmanos brigam nas ruas
Desordem e anarquia, com potencial de consequências muito piores, se espalham depois do esfaqueamento de meninas em escola de dança
A ordem social é uma percepção: nenhum país consegue ter policiais em toda parte, mas todos os componentes da sociedade precisam achar que existe uma razoável proporção entre crime e castigo. É a ruptura dessa percepção que está acontecendo aceleradamente em muitas cidades inglesas, com graves consequências futuras.
Algo que parecia impossível já aconteceu. Inspirados e liderados por ideologias de extrema direita, manifestantes envolveram-se em choques com a polícia ao longo dos últimos sete dias. Sua bandeira, basicamente, é contra a imigração em massa que está mudando o perfil das populações. Em Bolton, a desordem chegou muito perto da convulsão: manifestantes entraram em choque com muçulmanos que saíram numa contramanifestação gritando “Allahu Akbar”, a convocação à guerra santa.
Hoje de manhã, muçulmanos com os rostos cobertos por máscaras e balaclavas cercavam o centro islâmico da cidade de Leeds e se concentravam em lugares centrais de Birmingham por causa da boataria de uma manifestação. Tudo pronto para pegar fogo.
O detonador desses confrontos foi o hediondo episódio em que um jovem de dezessete anos esfaqueou onze menininhas numa aula de dança, matando três delas. A professora da aula com tema Taylor Swift e o diretor de uma empresa que tentou interferir também foram esfaqueados. Só uma menininha continua internada.
Durante vários dias, a identidade do assassino foi mantida em segredo, por ser menor. Enquanto isso, corriam boatos de todo tipo, inclusive que ele se chamava Ali Al-Shakati, obviamente um nome árabe. A revelação de que o assassino era filho de um casal vindo de Ruanda não mudou muito as percepções.
“VOCÊ É BRANCO?”
Inúmeros episódios de terrorismo e assassinatos cometidos por psicopatas de origem estrangeira alimentaram a revolta de uma maneira explosiva. Em alguns momentos, forças policiais pequenas pareciam estar sendo sobrepujadas pelos manifestantes, o que obviamente só aumenta a anarquia das ruas. Baderneiros também desfecharam uma onda de saques.
As condenações unânimes dos agentes políticos tradicionais e dos meios de comunicação, inclusive por casos de racismo explícito (“Você é branco? É inglês?”, perguntou um manifestante ao motorista de um carro), foram contrabalançadas pelas redes sociais.
Apesar de críticas à violência, muitas pessoas se identificaram com a causa dos manifestantes. “Aqui nos nossos sofás, torcemos por eles”, dizia um comentário de leitor. Também havia a percepção de que a polícia trata manifestantes de maneiras diferentes, jogando cães para morder os baderneiros brancos e sendo condescendente em casos envolvendo grupos raciais minoritários.
Recentes protestos de romenos ciganos em Leeds não foram reprimidos. Em Rochdale, muçulmanos de origem paquistanesa também promoveram tumultos por causa de um episódio que parecia de violência policial, mas na verdade foi o oposto.
Muitos ingleses chamam isso de “sistema de dois pesos”, ou “two tier”, dois níveis. Um repórter perguntou ao chefe da legendária Scotland Yard, Mark Rowley, se “o policiamento de dois pesos” iria acabar. Rowley agarrou o microfone e o tirou do caminho – uma cena praticamente impensável na Inglaterra, onde a maioria dos policiais sequer anda armada.
“GUERRA CIVIL”
O chefe da polícia havia acabado de participar de uma reunião do comitê para emergências nacionais chamado pelo acrônimo, Cobra. O primeiro-ministro Keir Starmer, que está há 34 dias no governo e já perdeu dezesseis pontos no índice de aprovação, prometeu ser implacável no enquadramento dos manifestantes violentos. Foi apelidado de “two tier Keir” – rima, em inglês.
Elon Musk, que tem algo a dizer sobre todos os assuntos do universo, entrou nessa briga também. Insinuou que “a guerra civil é inevitável” e endossou a visão de que existe um duplo padrão de repressão da polícia britânica.
Todos os que desrespeitam a lei e promovem quebra-quebra têm, obviamente, que responder por isso perante a lei. Existe também a forte suspeita de que países hostis, como a Rússia, estão alimentando a boataria para minar a ordem social no Reino Unido.
Mas o caldeirão social em que isso prospera não pode ser ignorado, inclusive porque tende a ferver mais ainda, agora que a revolta com a imigração em massa – 1,2 milhão de pessoas no ano passado – passou a ser manifestada em protestos de rua. Ignorar isso dá mais força à extrema direita, que de repente se descobriu porta-voz de um tema que vai muito além de suas fileiras. É evidente que muitos manifestantes não são militantes de grupos identificados com Tommy Robinson, o incendiário crítico da imigração, e similares.
Infelizmente, é isso que o governo de esquerda de Keir Starmer vai fazer. O governo conservador que acabou de sair também não fez, na prática, nada.
BALACLAVAS PROIBIDAS
Com o risco da contaminação além-fronteiras, o governo da vizinha Irlanda tomou a iniciativa de proibir balaclavas. O país tem uma população de apenas 5,2 milhões de habitantes, dos quais 1,5 milhão têm origem estrangeira – mais de 20%.
Proibir esconder o rosto não vai resolver em nada um problema muito, muito mais profundo.
Em novembro passado, Caio Benício, entregador do Deliveroo que deixou Niterói para ganhar a vida em Dublin, deu golpes de capacete num homem de origem argelina que havia esfaqueado três crianças e uma mulher na frente de uma escola. Ele ganhou o equivalente a mais de dois milhões de reais no GoFundMe, em sinal de agradecimento de pessoas comuns, e foi elogiado como um imigrante que trabalhava duro e contribuía para o país.
Houve protestos, quebra-quebra e choques com a polícia por causa do horrível episódio em Dublin, mas há também o sentimento de que o governo – qualquer governo – não pode ou não fará nada para mudar isso.
As percepções de ordem e desordem vão, assim, mudando rapidamente.
“Racistas”, xingou uma mulher ao ver um grupo de manifestantes. “Mas estão matando meninas com espadas”, respondeu um deles. Os dois lados têm razão.