“Abaixo Macron”, “Viva Putin”.
São frases mais do que inacreditáveis, incompreensíveis para quem vê de longe os acontecimentos políticos em vários países africanos.
Os cartazes mencionados desfilaram pelas ruas de Niamei, a capital do Niger, país onde um conhecido ritual africano se repetiu: o chefe da guarda presidencial apareceu na televisão, com uma muralha de uniformes por trás, e anunciou que o presidente a quem deveria proteger, Mohamed Bazoum, já era. Quem manda agora é o general Abdourahamane Tchiani.
A partir daí multiplicaram-se as manifestações, não contra o golpe, que derrubou um presidente eleito, mas a favor. Bandeiras e até roupas feitas com as cores russas começaram a aparecer entre os manifestantes, cuja ira se concentrou contra a França, a ex-potência colonial que o presidente Emmanuel Macron tenta incessantemente transformar numa aliada confiável e benigna, em especial porque tem tropas no país, enviadas para ajuda a combater o movimento islamista que continua proliferando na região.
O novo manda-chuva não é islamista, mas pende para a russofilia, um campo onde tem a companhia de países como República Centro-Africana, Mali, Líbia e Sudão. Em todos eles, o Grupo Wagner tem um papel importante no apoio militar aos regimes no poder – um dos motivos pelos quais a rebelião lançada na Rússia por Ievgueni Prigozhin não alterou as “atividades” africanas.
É dessas atividades que se originam fontes importantes do financiamento do Wagner, via exploração de recursos como petróleo, ouro, minerais valiosos e madeira. Tudo isso entra na “caixinha” compartilhada pela cúpula da elite e ninguém quer estragar a festa.
Depois do golpe no Niger, o próprio Prigozhin, “exilado” na Belarus, agitou mais ainda as águas africanas, dizendo que “os ex-colonizadores querem controlar os africanos”.
“Eles enchem esses países com terroristas e diferentes gangues, criando uma colossal crise de segurança. A população sofre. É por isso que eles amam o Grupo Wagner”.
A “análise” só não é mais louca porque, de fato, tinha gente dando vivas ao Wagner nas manifestações de apoio ao golpe no Niger.
“Toda a região central do Sahel pode cair sob a influência russa através do Grupo Wagner, cujo terrorismo brutal tem sido demonstrado na Ucrânia”, escreveu o presidente deposto, ainda preso, ao pedir ajuda aos Estados Unidos. Dificilmente isso vai acontecer. Até a Nigéria, que é dominante na região, tem poucas condições de uma intervenção direta no país vizinho.
Usar o passado de exploração colonial é uma tática russa que alimenta um sentimento coletivo em toda a África: o de que “eles” querem extrair todos os recursos do continente formidavelmente rico abaixo do solo e com tanta pobreza acima dele.
A Rússia faz isso desde o tempo em que se chamava União Soviética e disputava na África várias frentes quentes da Guerra Fria. Soviéticos e americanos apoiavam quem fosse, com qualquer histórico de atrocidades, desde que estivesse de seu lado. Por ordem de Moscou, Cuba chegou a mandar milhares de soldados para combater em Angola.
Muitos líderes africanos foram cooptados por Moscou e por Pequim. Até o formidável Nelson Mandela teve sua fase de membro do Partido Comunista – embora com sagacidade suficiente para ver que, com o fim da União Soviética e o desmanche do comunismo na Europa, estavam criadas as condições certas para um fim negociado do apartheid e do domínio da minoria branca sobre a África do Sul.
“Trilhões de dólares em ajuda ocidental na realidade não compram corações e mentes na África. Em vez disso, os africanos lembram-se com saudade dos 36 milhões de fuzis AK-47 com que Moscou abasteceu as guerras da África, mais os jatos MiG, tanques e artilharia”, escreveu na Spectator Aidan Hartley.
Culpar o colonialismo mesmo que ele tenha acabado há muito tempo continua a mobilizar a opinião pública e a oferecer uma desculpa perfeita para as oportunidades perdidas – espertamente exploradas por Moscou.
Quase metade dos 54 países africanos se recusaram a votar na ONU pela condenação da Rússia por causa da invasão da Ucrânia. Putin reforçou a mensagem ao prometer trigo de graça a seis países africanos depois que ele mesmo colocou o fornecimento no fundo do poço, ao denunciar o acordo que permitia a exportação de grãos produzidos na rica terra preta da Ucrânia.
Numa formidável demonstração de seu legendário cinismo, o líder russo, que violentou com uma invasão armada a soberania da Ucrânia, disse numa recente cúpula com dirigentes africanos que é preciso “lutar pela soberania, não desistir e não ceder a pressões externas”.
Esse é o mesmo Putin que, em 2005, ao responder a uma comparação que considerou ofensiva feita por Tony Blair, então primeiro-ministro britânico, recorreu ao pior de todos os racismos: “Todos nós sabemos que os países africanos tinham uma tradição de comer seus adversários. Nós não temos essa tradição, ou esse processo ou essa cultura”.
O golpe no Niger e as manifestações contra a França, que já retirou seus cidadãos do país, têm como pano de fundo um componente estratégico, o urânio, do qual o país africano tem a sétima maior reserva do mundo, empatando com o Brasil.
A França é o país que mais explora a energia nuclear, responsável por 70% de sua geração de eletricidade, mesmo sem ter nada de reservas de urânio. Agora, dois terços do mineral de que precisa para manter as usinas funcionando são provenientes de países da esfera de influência da Rússia.
O fato de que Putin forneça mercenários para manter no poder regimes africanos autoritários não muda a realidade de que uma parte da população veja os russos como amigos e os países ocidentais como inimigos. O Niger é só uma pequena parte desse jogo.