Balé é religião na Rússia e, por isso, uma das maiores denúncias contra a guerra da Ucrânia foi feita com pés acostumados a viver na ponta da sapatilha.
“Nunca pensei que fosse ter vergonha da Rússia”, escreveu Olga Smirnova, solista do Bolshoi conhecida por dançar o papel de Odette/Odile em O Lago dos Cisnes como se seus braços fossem feitos de penas, ao justificar por que decidiu abandonar o palco mais sagrado do mundo da dança.
Ela e Victor Caixeta, bailarino de Uberlândia que dançava no Mariinsky, (ex-Kirov) de São Petersburgo, outro templo mitológico do balé, foram para o Balé Nacional da Holanda. “Tive que tomar a difícil decisão de deixar a Rússia, o lugar que foi minha casa durante quase cinco anos”, escreveu ele.
Outro brasileiro, David Motta Soares, manifestou a mesma tristeza por deixar o Bolshoi, onde cultivou a mistura de força e leveza que torna a escola russa inconfundível.
O italiano Jacobo Tissi e o inglês Xander Parish, que saiu da Rússia pela Estônia com a mulher, Anastasia Demidova, que também é bailarina do Mariinsky, foram outros que deixaram o país.
A guerra na Ucrânia significa não apenas um clima mais opressivo como o isolamento da Rússia, sem a possibilidade de temporadas de balé no exterior.
Foi para mostrar no exterior a superioridade da cultura russa que as autoridades soviéticas permitiram a viagem do prodigioso Rudolf Nureyev para uma turnê do Kirov em Paris e Londres em 1961.
Os agentes da KGB que acompanhavam a companhia alarmaram-se quando viram o bailarino, de físico soberbo e exóticos traços tártaros, ir para bares gay em Paris e armaram a sua volta, inventando uma suposta apresentação especial no Kremlin.
“Quero ser livre”, proclamou Nureyev ao saltar – com habilidade profissional – uma barreira no aeroporto de Le Bourget e pedir asilo na França.
Era o auge da Guerra Fria e foi um golpe na guerra de propaganda da União Soviética, que celebrava o pioneiro voo espacial de Yuri Gagarin.
Treze anos depois, em 1974, o golpe se repetiu com Mikhail Baryshnikov, outro prodígio da dança, que pediu asilo no Canadá.
As condições na Rússia estão ficando tragicamente parecidas com as da União Soviética em termos de repressão ao direito de opinião – com a diferença que todos os russos abaixo de quarenta anos não têm memória da estrutura rigidamente controlada da época soviética.
A lei que permite até quinze anos de prisão para quem criticar a guerra na Ucrânia – que não pode ser chamada de guerra – é uma regressão brutal num país que nunca foi um exemplo de liberdades individuais, mas tinha todo o cardápio de acesso à informação propiciado pelo mundo digital.
O espírito patriótico que se propaga em momentos como o atual – “Meu país, certo ou errado” – e os níveis extremos de manipulação dos principais órgãos de comunicação, todos oficiais, dão a Vladimir Putin um nível de aprovação na faixa dos 60%.
Mas, ao contrário das poucas dezenas de dissidentes que desafiaram o que parecia ser um poder inabalável na era soviética, a oposição a Putin é muito mais disseminada e um ato de uma bailarina como Olga Smirnova tem um poderoso valor simbólico.
Mirando o espírito patriótico de tantos cidadãos comuns, Alexei Navalny, o oposicionista que Putin tentou envenenar com o agente químico novichok e agora mantém na prisão, disse em mais uma das farsesca audiências na justiça a que é submetido regularmente que os líderes do país nada mais são do que “velhos doentios e loucos”.
“Eles não têm simpatia por nada nem por ninguém. E a última coisa com que se importam é o nosso país. Sua única pátria é a conta na Suíça. Tudo o que dizem sobre patriotismo é um mito, bem como uma enorme ameaça para todos nós. Está claro o que precisamos fazer. O dever de cada um de nós agora é ser contra a guerra”.