O poder absoluto corrompe absolutamente, mas ajuda a esconder o que os poderosos menos gostam de revelar: sinais de doença física ou mental.
Enquanto Joe Biden tropeça nas palavras, confunde acontecimentos, cumprimenta interlocutores inexistentes e é interrompido até por uma assessora fantasiada de coelhinho da Páscoa, Putin construiu uma cortina de ferro em torno de tudo que não se refira a sua persona pública, cuidadosamente projetada, sem espaço para as esquisitices do presidente americano.
Mas os boatos não param: o rosto e a expressão mudaram, o pescoço sumiu, anda mais devagar, mostra indícios de que está tomando corticóides, parece inchado (ou cheio de preenchimentos, o que o deixaria no mesmo universo que sua “esposa secreta”, a ex-ginasta Alina Kabaeva, que reapareceu em público na semana passada com o lindo rosto totalmente transformado, como uma Madonna precoce).
Até seu comparecimento à celebração pascal comandada pelo patriarca Kyrill, o chefe religioso que confere legitimidade teológica à invasão da Ucrânia, foi analisada com lupa. Estava abatido? Mordia os lábios? Dava sinais de procurar o ponto de equilíbrio?
Pequenos detalhes podem significar simplesmente nada, mas a boataria é incessante. Ela explodiu depois da estranha audiência de Putin como seu ministro da Defesa, Sergei Shoigu, na semana passada.
Em tempos melhores, os dois apareciam acampando e pescando sem camisa na vastidão siberiana, região de origem de Shoigu.
Os tempos – ou pelo menos aspectos físicos de ambos – pioraram muito depois que Putin decidiu subjugar a Ucrânia.
Pareciam mais encarnar os personagens de Jack Lemmon e Walter Matthau num remake de Dois Velhos Rabugentos, ironizou Christopher Booth na Spectator.
Separados por uma mesinha pequena demais, ao contrário das imensas superfícies celebrizadas por Putin, Shoigu e o chefe disseram falas ensaiadas – e mal ensaiadas. Falando arrastado, Shoigu sentou-se na ponta da cadeira, enquanto Putin esparramou-se. O ministro, que tem patente de general embora seja engenheiro civil sem carreira militar, teve que ler uma declaração simples sobre a tomada de Mariupol.
Parecia mais estar dando uma prova de vida, depois dos boatos de que havia sofrido um infarto “não natural” – nem é preciso explicar o que isso significaria, principalmente depois dos fiascos da primeira fase da invasão.
A imagem de Putin, que tem 69 anos e currículo de atleta, segurando na quina da mesinha provocou mais especulações ainda: lembrou um recurso usado por pessoas com mal de Parkinson para controlar os tremores causados pela doença degenerativa, desencadeada quando o cérebro deixa de produzir dopamina.
O que é boato infundado, o que é expressão de desejo e o que é realidade?
Perscrutar a aparência de líderes russos em busca de sinais de doença não é novidade. Na época da União Soviética, a sucessão de líderes que “não paravam de morrer”, segundo o gracejo de Ronald Reagan (Alzheimer na fase final do segundo mandato), criou uma subdivisão da kreminologia, a “ciência” de analisar os jogos de poder pelos aparecimentos em público dos integrantes da cúpula suprema do comunismo.
Em três anos, morreram três líderes: Leonid Brejnev, Yuri Andropov e Konstantin Chernenko. O trauma da sucessões seriais, obviamente sem mecanismos democráticos para amortizá-lo, levou à escolha de um dirigente mais jovem e promissor chamado Mikhail Gorbachev. Imbuído da ideia de reformar para melhor o comunismo, ele desencadeou a inexorável dissolução da União Soviética, sem violência nem derramamento de sangue – fora um golpe frustrado de última hora.
O único indício indireto de que Putin tem problemas de saúde mais sérios foi levantado pelo site Proekt, que obviamente só pode funcionar fora da Rússia.
O Proekt é um dos sites que garimpam a vastidão de informações públicas propiciadas pela internet: registros de passagens aéreas, estadias em hotéis, aluguel de carros, emissão de passaportes e outras informações que, em conjunto, podem revelar muita coisa.
Uma delas: Ievgeni Selivanov, médico de um hospital importante de Moscou, viajou 35 vezes a Sochi, onde fica o “palácio de Putin”. Título de sua tese de doutorado: “Peculiaridades do diagnóstico e do tratamento cirúrgico de pacientes idosos e senis com câncer de tiróide”.
Em Sochi também foi fotografado, a poucos passos de Putin, o cirurgião Aleksei Shcheglov, otorrinolaringologista.
Ao todo, foram identificados cinco médicos no perímetro próximo de Putin, que desde 2012 tem alternado períodos em que cancela compromissos e “desaparece”. Com a pandemia, ele passou a viver em distanciamento total, num isolamento majestático ao qual alguns analistas atribuem pelo menos uma parte da autodestrutiva decisão de invadir a Ucrânia.
Se teve câncer de tireoide, enfrentou a modalidade mais curável da doença, que raramente é flagrada em estágio avançado em pessoas com bons recursos médicos – inclusive, uma das filhas adultas de Putin, Maria Vorontsova, é endocrinologista e pesquisadora.
Em 18 de março, Putin apareceu triunfante no estádio da Copa em Moscou, aplaudido por 200 mil pessoas em estado de fervor patriótico. Apesar de toda a encenação – e do casaco acolchoado de 14 mil dólares da luxuosíssima marca italiana Loro Piana -, ele pareceu arrastar levemente a pena direita. Mas, comparado à aparição da semana passada com o ministro da Defesa, estava tinindo.
Desde então, as forças russas sofreram dois golpes sérios: o centro de operações da região de Kherson (dois generais entre os 50 oficiais mortos, segundo os ucranianos, que tendem a um certo exagero) e um depósito de combustível usado para abastecer tropas na região de Donbas, onde agora os invasores concentraram o foco. O depósito fica em território russo. Sofrer um ataque em seu próprio solo, desfechado por um inimigo que menosprezava, é uma pancada forte para Putin, com ou sem saúde.
Tão cedo ele e Shoigu não devem aparecer pescando na Sibéria.