Uma mulher de cabelo azul que ama gatos, declara gênero fluido, é vegana, não tem carro e dá aulas na universidade ensinando que a geologia é racista. Esse é o estereótipo da pessoa mais alucinadamente adepta do pensamento woke que encarna a elite americana afastada da realidade, do tipo que diz “não conheço ninguém que votou no Trump” — ou no Bolsonaro, ou no Pablo Marçal. Como todos os estereótipos, tem um fundo de verdade — a professora da “geologia racista” existe, chama-se Kathryn Yusoff e ensina em Londres, mas poderia estar em qualquer universidade americana. O modo como as elites se voltaram contra o próprio sistema que as produziu — estudo, meritocracia, método científico — é um dos mais extraordinários desdobramentos da cultura contemporânea. Os pais fazem tremendos sacrifícios para dar a melhor educação possível aos filhos, mas, seja em Harvard, seja na prova do Enem, eles aprenderão que o capitalismo é a origem de todos os males do universo.
Os bons empregos irão para eles, mas a ideologia woke os acompanhará, produzindo promotores que são a favor de soltar criminosos, médicos favoráveis a amputações sexuais em menores e até milionários de esquerda. Em defesa dessas elites descompensadas, momentaneamente levando pancadas simbólicas por terem caído do terceiro andar diante da vitória de Trump, é preciso reconhecer que sem muitos de seus impulsos não absorveríamos a noção de que o Estado não deve ser um agente puro e único de punição, todos têm direito de viver como quiserem dentro da lei e é preciso um esforço constante para dar oportunidades aos que nem conseguem chegar a elas.
“Seja em Harvard, seja no Enem, os filhos da elite aprenderão que o capitalismo é a origem dos males”
Donald Trump, ou Jair Bolsonaro, ou Pablo Marçal não mudam um próton do pensamento de nossa estereotipada mulher de cabelo azul, mas servem como equilibradores de forças. Há um bocado de gente que não está sendo ouvida, dizem eles, metaforicamente. Irão as elites da imprensa, do mundo artístico e da academia abrir os ouvidos? A capacidade de renovação pode surgir de fontes inesperadas. “Nossa profissão agora é a menos confiável de todas. Estamos fazendo algo que não está funcionando”, escreveu Jeff Bezos no editorial do Washington Post que provocou agitação antes da eleição americana. “Se queremos que tudo continue como está, é preciso que tudo mude”, diz o personagem Tancredi Falconeri ao tio na obra-prima de Lampedusa, O Leopardo. Na verdade, tudo mudou: a aristocracia siciliana ruiu, os impostos transformaram palácios em museus e muitos de seus objetos acabaram nos antiquários frequentados pelo diretor Luchino Visconti para preencher armários que usaria no filme em que Alain Delon e Claudia Cardinale, duas das criaturas mais belas que já andaram sobre a Terra, encarnam a nobreza decadente e a burguesia ascendente.
O conteúdo dos armários não aparecia no filme, mas Visconti argumentava com os produtores que só conseguia trabalhar assim. Encarnava o ápice da elite e antecedeu a turma woke: ganhou o apelido de “conde vermelho” porque, sendo de uma família da aristocracia de Milão, era simpatizante do Partido Comunista da Itália. Quanto mais muda…
Publicado em VEJA de 22 de novembro de 2024, edição nº 2920