“Ele não parece entender que há certas coisas que não se faz”. Poucas vezes palavras tão cuidadosas foram usadas pela CIA na avaliação de um líder político estrangeiro.
Apesar da cautela, a conclusão não deixa a menor fresta de saída: Mohammed Bin Salman, o príncipe herdeiro e mandachuva de fato da Arábia Saudita foi quem mandou matar o jornalista Jamal Khashoggi.
Os detalhes macabros a esta altura tornaram-se amplamente conhecidos. Khashoggi, que tinha um horário marcado para pegar uma certidão de divórcio no consulado saudita em Istambul, foi estrangulado e picado por uma equipe de 15 agentes sauditas enviados especialmente para a “missão”.
Os pedaços do corpo provavelmente foram entregues a um “colaborador” local para sumir com eles.
Esta parece ter sido a única parte do plano que funcionou: os restos mortais não foram encontrados até agora. O nível do serviço dos dois especialistas em “limpeza” – um toxicologista e um químico – que sugaram provas até no encanamento do consulado depois do crime ainda não pode ser definitivamente avaliado.
O resto, pareceria um pastelão se não envolvesse um crime tão horrível. Os planejadores da operação provavelmente acharam que estavam sendo muito espertos.
Mandaram na “equipe” um médico legista para fazer o esquartejamento de forma profissional. Também foi um quase sósia que vestiu as roupas tiradas quando o corpo provavelmente ainda estava quente – e, obviamente, inteiro. Só o sapato não serviu.
“Vestido” de Khashoggui, ele andou por vários pontos turísticos de Istambul, sabendo que sua imagem seria captada por câmeras de segurança.
As imagens foram localizadas, mas os turcos tinham desde o começo, muito, muito mais. Para desgraça dos sauditas, o consulado estava inteiramente grampeado – uma prática comum entre países amigos ou inimigos.
Desde o começo, os turcos tiveram os sauditas na mão. Habilmente foram soltando aos poucos as informações.
Como num jogo de gato e rato, a cada desculpa esfarrapada inventada pelos sauditas, vinha o contraditório – com a prova irrefutável. As gravações foram mostradas a quem quisesse ouvir.
Diante da impossibilidade de desmentir o indesmentível, a Arábia Saudita finalmente decidiu cortar na carne e entregar a cabeça dos agentes envolvidos no assassinato, incluindo dois muito próximos do príncipe herdeiro, conhecido como MBS.
A farsa teve desdobramentos inacreditáveis. Antes de ser liberado para sair do país – Mike Pompeo, o secretário de Estado americano, foi pessoalmente dar uma pressionada -, um dos dois filhos de Khashoggi, Salah, foi chamado ao palácio real para receber “condolências” pela morte do pai.
A cena dele, com expressão inescrutável, cumprimentando o homem que mandou matar seu pai é digna dos piores momentos dos processos stalinistas contra comunistas fieis, porém indesejáveis.
Mesmo depois de deixarem o país, Salah Khashoggi e o irmão deram entrevistas muito cautelosas nas quais evitam acusações ao príncipe herdeiro.
Levando a farsa a níveis mais absurdos ainda para proteger MBS, o vice-procurador de Justiça indiciou 17 pessoas pelo crime, baseado na seguinte construção: a operação toda foi comandada por um alto funcionário do serviço de inteligência que mandou a equipe a Istambul para levar Khashoggi de volta para a Arábia Saudita, por bem ou por mal.
O príncipe, naturalmente, não fazia a menor ideia do que tramavam por suas costas.
O “líder da missão” concluiu que não iria convencer o jornalista. Então, “decidiu matá-lo”. Como homicídios são punidos devidamente pela sharia, a lei islâmica em vigor na Arábia Saudita, cinco dos 17 indiciados podem, teoricamente, ser decapitados. Isso sim é dar a vida pelo chefe.
É esta derradeira palhaçada que a CIA desmontou com uma interceptação na qual um dos integrantes da equipe de assassinos liga a um assessor do príncipe e manda o seguinte recado: “Diga a seu chefe” que a missão foi cumprida.
O que acontece com o príncipe, exaltado como um reformista jovem e inspirado e reduzido a mandante de assassinato pego no ato – ser pego, obviamente, é o pior dos pecados.
A chapa está certamente fervendo nos palácios de luxo inimaginável onde os príncipes mais importantes das família real têm que resolver se continuam no barco de MBS, aceitando um longo período em que ele será um pária internacional, ou arriscam seus pescoços num golpe interno em nome dos interesses superiores do país.
Reis, príncipes e outras altezas são títulos copiados das monarquias ocidentais, mas a Arábia Saudita funciona de acordo com as regras do antigo sistema tribal. O consenso entre os chefes mais importantes pesa muito.
Sem contar que o título mais importante do monarca é o de custódio ou guardião das duas mesquitas que estão na gênese da religião muçulmana, Meca e Medina.
Pode um mandante de assassinato de um muçulmano – o detalhe é importante – desmascarado diante do mundo ser o guardião dos lugares santos?
Mohammed Bin Salman conquistou a simpatia de uma boa parte da opinião pública interna com medidas liberalizantes, para os padrões sauditas, como permitir que mulheres dirijam e liberar entretenimentos como cinemas e shows, condenados pelos clérigos seguidores do wahabismo, o fundamentalismo islâmico espalhado mundo afora pelos petrodólares sauditas.
O príncipe concentrou todos os mecanismos de poder sob seu controle, mas queimou o filme com o incrível fiasco do assassinato do jornalista.
Entre as informações cuidadosamente vazadas pela CIA consta que “estão sendo analisadas” comunicações entre Jamal Khashoggi, um operador político com atividades muito além do mero jornalismo, e o irmão mais novo de MBS, Khalid Bin Salman, embaixador em Washington.
Estaria aí a origem da fúria do príncipe herdeiro com Khashoggi, um simpatizante do islamismo politizado ao estilo da Irmandade Muçulmana que foi morar nos Estados Unidos quando começou a entrar em atrito com MBS?
As intrigas só vão aumentar com o cheiro de sangue na água que atrai tubarões de todo tipo.
A divulgação das conclusões da CIA não deixa muito espaço para o presidente Donald Trump, que apostava numa aliança entre Arábia Saudita, Israel e Egito, além de outros países do Golfo Pérsico, para enquadrar o Irã e forçar um acordo de paz com os palestinos.
O momento é ruim até por causa da situação em Israel, onde Benjamin Netanyahu enfrenta resistências à direita por ter aceitado um cessar-fogo com o Hamas depois dos últimos incidentes em Gaza.
É impossível não ver a influência americana na decisão do primeiro-ministro, arriscada a ponto de potencialmente exigir a convocação de novas eleições.
Os interesses dos envolvidos são permanentes. Os Estados Unidos não vão isolar a Arábia Saudita nem se afastar de Israel sob novo governo.
Mas com a dupla Bibi e Mohammed a perigo, por diferentes motivos, a região regride a uma situação que pode ser chamada de a constante do Oriente Médio: tudo que pode dar errado, dá, em geral duplamente.